sábado, 17 de outubro de 2009

Três desenganados

mesa póstuma

era preciso, era extremamente necessário, imprescindível mesmo
que o troco de nosso amor corrido, prostituído em meio período
fosse o preço da consumação.


penas brancas

você pesa como 70 quilos de pena, meu amor.
essa tua bondade que me inibe o voo.


clandestino

atrás da moita tiro
meu seio pra botar na tua mão
só que meu coração vai junto.




Ana Claudia Abrantes

sábado, 10 de outubro de 2009

DEL

De leite em leite, ela
delícia dele delata
de leite em leite, de passo a passo
de grão semente à morte.

De leite em leite ela
delícia dele rápida
deleite em lente de tela em frente: memória
fraca...

Deleite em leite ela
delícia dele dilata
de grão em grão acaba a história
delete.


Ana Claudia Abrantes
09/10/2009

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Saudade

Eu confesso que sinto falta de Deus. Confesso que já me achei uma tola pelo tamanho da fé que tive comigo um dia. Confesso que minha fé começava em Deus e se estendia a todas as pessoas ao meu redor e talvez até a mim mesma. Confesso que depois de uma oração eu me sentia renovada e era capaz de quase tudo de bom. Confesso que às vezes eu sinto saudade de "mim um dia".
Mas confesso que, hoje, acontece uma estranha tranquilidade dentro de mim, quando alguém me dá a mão e rezamos um simples Pai Nosso. Aí eu lembro da mocinha que orava com os amigos e acreditava sinceramente que "onde estiverem dois ou mais reunidos em Meu nome, Eu estarei" (algo mais ou menos assim). Entretanto penso que a lógica é que Deus esteja onde houver um ou onde houver todos, mas entendo sinceramente o que aquele velho trecho da Bíblia queria dizer... Só não sei se argumentos lógicos têm algo a ver com Deus. Talvez tenham deveras. O que é estranho é que quanto mais pragmática eu fui ficando, mais um sentimento de espiritualidade foi perdendo a vez.
Confesso que, apesar de tudo isso, há algumas pessoas por quem eu oro com certa frequência, (embora bem mais rápido do que eu gostaria), há alguns dias em que eu sinto necessidade de agradecer a Deus sem exatamente saber o quê, há algumas vezes em que eu O imploro sem palavras. Confesso que quando não consigo orar, quando não me sinto cheia da graça de Deus, fico com o coração entregue se alguém diz: "Estou orando por você e pelos seus". E se eu sinto que é verdade.


Ana Claudia Abrantes

sábado, 12 de setembro de 2009

Talvez uma moça não deva reclamar de flores

Talvez as escolhidas tenham amores sem delicadezas instituídas.
Quando uma mulher recebe quase tudo de um homem é hora
de agradecer porque ele seria capaz de muito: ele lhe faria um banho de hidratante de pêssego, ele lhe alimentaria os filhos, mesmo bebendo também o seu leite, ele lhe faria um currículo lattes um dia inteiro. Quando uma mulher recebe de um homem quase tudo que ele poderia dar, não é justo
que se reivindiquem flores.
Flores dizem que a ausência vai em forma de beleza efêmera, mas o carinho é perene. E dizem mais: dizem que Vênus é uma estrela tola, mas encantadora, dizem que a alma da moça, que eles sempre mal conhecem, merece sutilezas, ainda que distantes.
Flores são para moças tristes.
E ela é uma mulher feliz...
É perigoso, injusto ou feio reclamar de flores.




Ana Claudia Abrantes

domingo, 2 de agosto de 2009

historinha

meu nariz espremido
na janela do mundo
você passou na rua
quebrei o vidro e a janela
meu nariz ficou espremido
em você.





Ana Claudia Abrantes
Sem data

sexta-feira, 31 de julho de 2009

estrelas e cruzes





papéis soltos não são contra o vento,
voam as pernas dos capoeiristas,
o calor sobe em ondas
e alguns cantam para subirem os espíritos.

por outro lado franjas são pendentes,
as águas sempre escorrem
e há os que temem o céu descendo no último dia.

embora nem sempre as palavras deslizem,
a gravidade chama até a luz e mais nada escapa.
porque a vida é feita de norte e sul, estrela e cruz
e até mesmo um anjo,
um dia,
cai.




Texto - Ana Claudia Abrantes
(Escrito na mesma ocasião de "Estrela e cruz", mas reescrito agora.)
Fotos - Agatha Franco
São João Batista - Botafogo - Rio de Janeiro

quinta-feira, 30 de julho de 2009

brevíssimos X

não peremptório

do gelo seco não sai água.






sobre desistir

en saio saio saio saio saio




Ana Claudia Abrantes

Coma

Ratos alimentados podem fazer parte da história. Os ratos chegam antes do jantar e ficam à espera.
Sempre que se está à espera uma sombra é figura.
Quando vultos de farelos caem da mesa eles correm.
Mas os farelos eram só a purpurina se soltando da toalha decorada.

Hoje nem tudo alimenta, mas tudo é brilho.
E todos os olhos fotofílicos se apertam no desespero das risadas.

Tudo que espera subsiste, enquanto tudo que queima morre mais depressa.
Ratos não queimam espontaneamente.
O jantar acabou e eles sobem até a tábua.
Os talheres frios, os copos abandonados, os restos inanimados, mas ainda odoríferos: subsistência.
O jantar corre sem o tilintar de garfos e pratos; não é uma festa.
E se come de pé, fazendo pequenos bolos com as mãos.
Há muito as velas se apagaram.
O silêncio escuro do jantar não abre sorrisos.



Ana Claudia Abrantes

Renitência

Formigas fazem ninho nos meus pulsos.
A água quente do chuveiro as elimina,
mas os buracos ficam.
Formigas fazem ninho nos meus pulsos.
A água quente do chuveiro as elimina,
mas elas sempre voltam.
Formigas fazem ninho nos meus pulsos.
A água quente do chuveiro as elimina,
mas não tapa os buracos.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Espelho d'água em temporal

A água do rio correndo vai escorrendo a copa das árvores.
Mas lá no alto as copas continuam ilhadas diante das margens.
É que as árvores não são águas e vão velozes,
mas para o mesmo lugar de onde saem.
E elas nem sempre desenraizam, só ficam instáveis.

No espelho caudaloso, as árvores
são quase pastosas.
Na cascata célere, as árvores
saltitam.
Geralmente as copas não partem, são porto
para homens e pássaros.
Até que o rio espelho bota corpo
na tempestade
e reflete, fluvial, o movimento secreto
dentro delas.



Ana Claudia Abrantes

Magoado

Até nisso era original. Saiu batendo a porta com o pulmão partido, só foi chorar no nebulizador.






Ana Claudia Abrantes

Negociando

Penetro inalante,
adnax vasoconstritor,
bronquivita fluidificante,
soro fisiológico hidratante,
dipirona analgésico,
diclofenaco potássico anti-inflamatório,
mylanta plus digestivo,
bicarbonato de sódio básico:

São as minhas condições.




Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Perdida

Quando a pedra derreteu, não havia, na terra, poros para absorvê-la. A pedra ficou escorrendo, quente e fluidificada. Chegando ao nível do mar, o oceano ficou morno por alguns dias, mas a pedra resfriada
virou ilha.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Inverno

- Está muito frio mes-mo agora ou eu estou com febre?
- Está frio, mas não muito.
- E se eu estiver com febre? Você fala com mais carinho ou eu vou ter que implorar?
- Eu te amo. Desculpa qualquer coisa. E obrigado por tudo.
- Isso. Muito bem. Mais.
- Eu te amo, dá licença?
- Vai, você consegue, capricha!
- Eu te amo, desculpa tá, me dá licença, está servida? Eu te amo, fique à vontade, está gostando, precisa de alguma coisa?
- Talvez.
- Mas eu não te amo por favor nem obrigado.
- Eu te amo contudo e todavia, mas eu não te amo embora nem apesar.
- ...
- Brevíssimo?
- Encantado...



A.C.A.M. e K.K.A.

sábado, 11 de julho de 2009

Resposta

Solta a minha mão, já que não tens juras. Já vai tarde, foi demais, mas vá embora. Estás aí com o atraso das folhas e eu já tenho a minha roupa amarelando no varal. Pois as folhas já caíram e é melhor morrer o corpo do que deixar passar o tempo da alma. Aliás, nem sempre é tempo de caqui, não é mais tempo. Não vamos poder chupar com gosto vermelho as nossas queixas. Está na época da poda, meu amor. E é preciso cortar os galhos velhos que farão sombra nos novos.



Ana Claudia Abrantes

trilha

o caminho cessa rio nes cio cicio cilada. um rio nes se cená rio, nes se silên cio entre árvores, é oásis nes ces sá rio.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Meio amor

Era uma substituta e, como toda substituta, começava mal-amada. Eu também sou uma substituta, eu sei. Porque sei, tentei ser amável, mas além de ser substituta sou humana das piores e acabei fazendo o que todos fazem: amei menos a substituta. A substituta percebeu meu meio amor, mas, precisando ser aceita, acedeu, como é da natureza da substituição.
Os substitutos, se não avisados por alguém ou por intuição, vão desprotegidos ao encontro do mal querer implícito. O substituto desavisado já começa querente, querendo ser amado sem condição ainda para tal. A condição é somente alheia, o substituto não dá as cartas: planta nova em jardim pomposo fica na sombra; recém-chegado no banco da frente pára no primeiro sinal; passageiro novo em ônibus lotado via Madureira-Bananal às oito horas, vai encontrar lugar? Há! O substituto ardoroso é ingênuo feito saia godê na ventania; sabe que não vai dar, mas insiste e sempre paga calcinha.
Já eu sou uma substituta orgulhosa irremediável. Faço questão de ser amada não. Sou só ensaio porque vivo sem patrocínio. E se ninguém paga pra ver, não sabe o que está perdendo. Porque o substituto orgulhoso pensa que pode cativar na passarela, só que ele não sai e dá-se o desperdício igual ao de pessoa genial em universo limitado. O substituto não tem chance. Mas tem sempre quem o queira como estepe da emoção, como segundo marcador de livros, como livro fácil pra descansar de Joyce ou da G.H. É útil.
O substituto não entra no portarretrato. Aliás, retrato não é coisa pra substituto, no máximo um digitalizado facilmente apagável, nada de impressão em papel. Substituto não vai pra estante. Substitutos só vão até a cama e o canto do quarto.
Sabe-se de histórias de substitutos que surpreendem, mas geralmente quando o titular era meio displicente. Quando no fundo no fundo ele não era tão bom assim. Então o substituto, inteligente, usa a ação e a sabedoria: faz e espera. Um titular forjado sempre é desmascarado e sua magnanimidade não cabe mais num copo. Se alguém me substituir ninguém vai chorar. E olha que eu até posso transbordar.
Mas se o titular é um mito, meu caro. Mitos são mais aderentes que fantasmas. Porque os meus fantasmas não passam por portas trancadas, tudo tem limite. Já o mito é a segunda pele das paredes, é a fada dupla presa em estrelas pequenas. Contra mitos não há argumentos e o substituto repete o C.A. porque não sabe rabiscar direito. É, afinal, o C.A. dos gênios, mas eu.
Bem, a substituta... No dia em que a substituta chegou a minha casa, ela se comportou sem pretensão, bem no lugar dela, como cabe às substitutas. E por isso pacientemente eu lhe ensinei a colocar os garfos e facas na posição que eu queria sempre e sempre insistia em dizer à outra; ensinei a pôr mais "comfort" no molho das roupas, como eu não tinha tempo de lembrar à outra; ensinei a colocar menos cominho na comida, como há muito eu pretendia dizer à outra. E a outra, sua parente, dizem que está até com ciúmes. Sem razão. Porque essa outra já havia pensado em se matar, e ter pensado em se matar pelo menos uma vez na vida é condição essencial pra ser alguém pra se gostar. É que, quando se quer muito, a vida é pouca.
Minha nova substituta não tem coisa vívida. Desde que seja vida já está bom. Ela não me toca nem gosta de música. Ela não tem vontade pulando dentro dela. Ela mistura pano de prato com pano de chão porque misturaria cigarro com sonhos. Ela não precisa de portarretrato, ela não pede nada. Parece só feita de dentes parcos, marido e filhos, muitos filhos. Ela precisa de leite, não de água. Minha substituta precisa do meu compromisso social, não do meu amor e isso me mata... Vou comprar uma pomada para as manchas do seu rosto porque eu gosto de arte e do que é belo e ninguém merece ver flores pisadas dentro de casa.

P.S.
No dia em que eu me cansar de ser uma substituta, plantarei um pomar só para mim. Lá eu terei maracujás e onze horas, e plantarei de novo manga-espada. No muro alto eu me colocarei, impressa, e ficarei ali aderida. Para que nunca ninguém venha me substituir no papel de hera.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Unção extrema

Há uma taça em primeiro plano, à esquerda de Jesus. Esta é a mão com que Ele segura a mão do Pai, pois Deus só tem o lado direito aos melhores. Enquanto faz, com a direita, o juramento divino e, com a esquerda, segura a mão do Pai (que dizem só ter a direita, já que ninguéu ouviu falar sobre o Seu lado esquerdo), Ele não beberá da taça.
Depois, Deus o dá aos homens. Será quando Ele tomará aquele vinho com a esquerda. E, então, levemente ébrio, perdoará todos os nossos pecados.



Ana Claudia Abrantes
22/06/2009

domingo, 21 de junho de 2009

ao molho pardo

juliana de beterraba, juliana de cenoura, juliana de batata, juliana de piranha.
escondidinho de camarão, escondidinho de carne seca, escondidinho de piranha.
dobradinha.
creme de abóbora com gorgonzola e juliana de legumes, caldo de piranha.

juliana escondidinha, dobradinha, na mesa:
caldo de juliana,
picadinho de juliana, juliana legume.




(Ùltima versão)

Ana Claudia Abrantes (e demais colaboradores!)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

juliana

juliana de beterraba, juliana de cenoura, juliana de batata, juliana de piranha.
escondidinho de camarão, escondidinho de carne seca, escondidinho de piranha.
dobradinha.
creme de abóbora com gorgonzola e juliana de legumes, caldo de piranha.

juliana escondidinha, dobradinha, na mesa:
caldo de juliana,
picadinho de juliana, juliana legume.





Ana Claudia Abrantes
11 de junho de 2009

terça-feira, 9 de junho de 2009

O.caso de amor

Oco acaso, caso oco, acaso uma testa no fundo da piscina. Bem que ele avisou: Mergulhos não são aconselháveis no vazio. Mas ela, que não conhecia homeopatia, esperava um fundo falso. E sair do outro lado com uma bóia na mão e um remendo de nada no supercílio. Que nada.
Oco acaso, caso oco, ocaso.


Ana Claudia Abrantes
09 de junho de 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Pomar de bergamotas

Olhava com ternura o casal que passava. Ouvira falar que tiveram filhos gordinhos e o povo acrescenta que o mais novo quase rasgou o corpo dela. Nessa época ele enlouqueceu. Faltou ao trabalho sem justificativa, ficou barbado; a caspa ficava dias salpicando sua camisa preta e ele pregado ao lado da cama. Até que concordou que era a única solução arrancar-lhe o útero. Quando ela acordou, entendeu que agora era metade mulher e ele decidiu mostrar-lhe a Europa um dia. Foi o que fizeram nesse fim de ano, depois de tantos anos do procedimento cirúrgico e agora quando ela não mais lembrava. Aliás, ela não vinha lembrando de muita coisa. Às vezes até embaralhava o rosto dos filhos e netos e, para chamar pelos nomes, simplesmente os sorteava. Agora nem mais a pílula azul ele tomava e fazia era tempo que nenhuma amante lhe acendia as memórias da madrugada. Um dia, escapou e ela soltou um pum. Havia demorado tanto que ele nem se surpreendeu mais. Mas ficou assustado quando ela se perdeu em Vilar dos Teles e ele sentiu que nunca mais a veria. Foi ali que ele pensou que o tempo passa e que não podemos fazer nada. E desconfiou o que sempre soubera: que ela não tinha sido o amor de sua vida não, mas era ela o amor que a vida deu e vinham sendo felizes sem mais, desde que decidiram não querer tanto.

Quantas vezes ela não gostou e tentou expelir o esperma dele de volta, forçando a descida para as coxas, mas tanto não conseguiu quanto ninguém ficou sabendo. Dizem que algumas fêmeas de inseto conseguem... Ele também já quis botar o travesseiro na cara dela. Um dia ele gritou. Outro, disse amém. Teve dia que quase se socaram. Mas quanto de medo também pode construir castelos de mármore? Só que o mármore, que não tem cheiro, tem o pomar de bergamotas do castelo e isso inebria hoje o meu apartamento inteiro.
FIM


Nota do autor:
Melhor sair às pressas antes que a minha inveja se transforme em duas e o meu talento para entortar faça efeito por telepatia na vida dos outros. Não ter um amor assim também me deixa verde, mas pedir é sempre um erro, um convite, à miséria. Então recolho minha mão estendida, e fico toda me querendo, invisível.




Ana Claudia Abrantes

corte

não tenho sido véus nem transparências, tenho sido o ponto final guilhotinando o não da palavra. e um não interrompido não se transforma em sim, nem talvez. porque o não da palavra ecoa. Cortar-lhe o eco é.



Ana Claudia Abran.

terça-feira, 26 de maio de 2009

rascunho

tento me sublinhar, mas vivo me rasurando.


Ana Claudia Abrantes

sem explicação

no poema, palavra com palavra dá uma química.


Ana Claudia Abrantes

xeque-mate *

quando minha palavra morde a entrelinha, fiz um poema bom e paro.


Ana Claudia Abrantes

xeque-mate

xeque-mate
ei, você que segue! não leia, não veja,
aquilo que te beija não é a virtude. deseja o poema primitivo ou o bom texto? pois meu fruto tem água ao morder; tem um gosto sumarento e cheiro de terra molhada escorrendo pela boca e pescoço. depois, não sei como eu mesma vou lambendo o veneno que me escorro dessa fruta doce, mas com a cica dos dias aqui. também da língua alheia sai palavra enfeitiçada, que me larga encantada na esquina. fico olhando frases que me dão as costas como tantas coisas belas pelas costas eu já vi, boas e ruins. risos. depois sinto o caroço_

o xeque-mate:
quando minha palavra morde a entrelinha, fiz um poema bom e paro.

Ana Claudia Abrantes
25/05/2009

Quase um haicai

"Você brilha feito estrela e provavelmente sempre soube isso." Então ela sorriu.
Para surpresa de todos, um mundo iluminava-se bem ali, bem dentro, bem... dela.
Aí ela agarrou a rabiola de uma pipa que passava e voou, pra ver o sol.
Mas o menino cruzou linha de cerol e ela caiu bem no meio do mar azul.



Ana Claudia Abrantes

à espera

aquele moço era uma ternurinha. mais uma pouco e ela
ficaria
para sempre
na fila.



Ana Claudia Abrantes

pelas entranhas

pela epiderme se sente a temperatura,
mas pelas entranhas é que se mede a natureza.
pela epiderme é que unguentos aliviam,
mas nas entranhas se dão milagres, como os filhos.

na epiderme, os perfumes e os cheiros sem banho.
nas entranhas, a memória disso tudo.

à medida que as entranhas plastificam as vontades,
a epiderme envelhece.
só quando as entranhas transcendem,
uma criança nasce.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 25 de maio de 2009

o que se é

ser não é ter sido
ter não é ter tido
ter sido não é será.
porque ser é nome próprio
que nunca será descrito
a não ser que seja tecido no dia
e se apronte na hora
quente, feito pão.



Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Estrela e Cruz

Quando um jovem que você ama demais morre, todos os dias, durante alguns anos, você pensa que ele está entrando pela porta e você sabe que ele está com a mesma calça jeans clara e uma daquelas blusas brancas de algodão de que gostava. Ele, como sempre, não chega em silêncio e já faz cara de susto-rindo por causa do seu cabelo, ou começa, mal entra, a contar uma coisa que aconteceu no trabalho. Sempre algo engraçado ou extremamente simples. Quando, todos os dias, você pensa isso, sabe que ele não vai entrar, mas, ao mesmo tempo, você não sabe. Mesmo. Porque pensar que ele chegou como chegava, fazendo o barulho do molho de chaves, segurando uns óculos escuros ridículos com os quais ele se achava o máximo, dá uma coisa. Quando você pensa que ele entra fungando discretamente de rinite alérgica, você pensa e sente uma ternura serena pela vida e pela vida dele e, nesse minuto, todos os dias, você é feliz. Depois, você monta um álbum fotobiográfico com a farda, com as danças, com o carro dele. E na capa do álbum há uma flor branca porque ele gostava de flores brancas. Quando você folheia o álbum, curiosamente você pensa que os passos atrás de você, você pensa que aquele barulho no portão, pensa que o carro chegando, pensa que aquela voz, você pensa que a voz do outro é a mesma, que o gesto dos outros três são tão irmãos, mas, talvez, nunca o mesmo coração... Você pensa, de verdade, em sonho agora e pesadelo ontem. E ele vai rir e dizer que você estava gritando, dizendo coisas desconexas num pesadelo do qual ele teve de vir te acordar. E te diz com carinho e aquela blusa branca que você volte a dormir.
Por muitos meses, anos, você pensa isso e gosta de pensar, porque pensar é um alívio, pensar te suspende no tempo e você vê de novo: a calça clara, a blusa branca, as flores brancas e cada coisa, como devia ser, em seu lugar.

Ana Claudia Abrantes
08 de maio de 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Sem palavreado

Não se descreve o gosto de fruta-do-conde para um gaúcho, mas não é igual jabuticaba.
O azul do céu de dezembro não é o mesmo de março porque o azul do fim de março é quase frio.
Carinho de pé é tão bom quanto o de mão, só que melhor.
Orelha de cachorro é macia, mas você tem medo.
Liguei pra dizer que sinto falta, mas não é o mesmo que sentir sua falta.
Eu te amo não é moeda de troca, mas mentiras não são tão fáceis.

Dizer é árvore, é ponte, é palavra.
Subir é diferente.
É atravessar galho por galho até o outro lado, no topo e, lá de cima, reconhecer:
Ah! o amor!
... então e isso.




Ana Claudia Abrantes
22 de abril de 2009

ressalva

provar com a ponta da língua é um privilégio.
empinar papagaio é coisa de menino, mas não no meu peito.




Ana Claudia Abrantes
22 de abril de 2009

gradação II

olhar com rabo de olho,
tocar com a ponta dos dedos,
provar com a ponta da língua,
cair de boca.




Ana Claudia Abrantes
22 de abril de 2009

(Serve pra sorvete, chocolate, cachorrinho, edredon fofo em dia de chuva, amigos, sambinha, cachoeira, cinema, namorado,pastel de queijo e salada de rucula, beterraba crua, agrião e tomate cereja.)

terça-feira, 21 de abril de 2009

Ordem e contra ordem

Nada há de imperativo no meu comentário; nada em mim é muito imperativo. Apenas aponto um dedo imperialista quando estou afirmativa; por te querer, Norma, tão longe que eu possa te medir melhor. Mas não me aponte; aponte as palavras (a ponte: as palavras), assim me calo. Se é uma ordem , minha vontade é nenhuma. Se o tom é áspero, então não me apaixono. Se tem de ser agora, eu não faço. Manda quem pede por favor, obedece quem fica de quatro. Nada que me impera me prende. Não por todo o tempo. Mas vivo subjúdice ao poema. E, por isso, tantas vezes, aparentemente muda.




Ana Claudia Abrantes
21 de abril de 2009

Vesuv&ana

Para derreter pedra é preciso muito mais que fogo. É preciso mais que insistência. É preciso ser mais que contínuo ou intermitente. Para derreter pedra é preciso que a terra sue, que a terra babe
a intolerância contra seu próprio casulo, e se abra em leite. Vermelho e quente.
Derreter pedra não é coisa que se faça à toa, ou impunemente. Também não é coisa que se faça de imediato.
Para derreter pedra
antes
é preciso entender a dívida que se contrai com sua outrora perenidade,
é preciso aceitar a dívida por tê-la feito tirar os pés da terra firme,
é preciso acatar a dívida por desafiar o sólido, o solo e o sol. Porque do sólido é feito pasta ardente, o solo se afunda em pista ácida, e muda-se o sol do céu pra colocar no chão.

E a dívida com a pedra nunca se paga.
Afinal, era ela quem segurava os papéis contra o vento, era ela quem enfeitava a subida dos morros do Rio, era ela quem mantinha o protocolo de mármore.
A pedra não é essencialmente carinhosa; o corpo é que se amolda a ela para deitar ao sol. Mas, numa pedra, firmam-se os pés pra sustentar todas as certezas dos contos de fada, toda a arrogância ingênua das certezas rígidas, todas as certezas de fato e direito. Todas essas certezas, porém tão confortáveis...

Promessa de pedra não se quebra, derrete-se. Então é preciso derretê-la com muita força, medo, amor e hábito. É preciso derretê-la.
Mas a pedra cobrará seu crédito,
la-te-jan-do
todos os dias, pela manhã e à noite,
verdades ferventes, lembranças de sólida instabilidade e um amor de granito - o fogo eterno...

Pedra,
não ver o Vesúvio não significa não amá-lo _ cláusula pétrea _ para sempre.


Ana Claudia Abrantes
abril de 2009

(Para V.)

domingo, 12 de abril de 2009

ágeis e vítimas

entre quatro margens e o céu, o tempo corre, ou pára.

águias paradas canalizam o silêncio. são antenas que captam o imprevisto, a imprudência. são ferozes que guardam as máscaras mortuárias, são algemas que prendem a inocência.
águias paradas absorvem o barulho, intermitente, dos outros pássaros. absorvem o canto e o movimento assustado, célere, dos passarinhos. e aquietam. atentas . anteveem a tontura da caça, a futura ausência do dono no ninho. águias paradas são bomba e relógio, separadamente. águias paradas são antes. são antes do próximo passo. ágeis são de repente: o céu, a garra e o nada.

já as águas paradas são lodo, são limo. canalizam folhas murchas e esqueletos de girinos que não vivem. águas paradas são charco e não é bom sonhar com elas. águas paradas decantam cativas do tempo. não cumprem a função de sempre escorrer; são ontem. águas paradas são mornamente em espelho: as árvores e o céu, mas, vítimas, entre quatro margens, ficam escuras.

águias paradas precisam estar em instante. pois águias paradas não podem, não devem, não querem ser águas paradas. embora nelas, nas águas, a vida continue insistindo (mesmo contra o acúmulo do tempo em camadas) e sempre vingue.



12 de abril de 2009
Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Só um pensamento:

Entre paredes, um milagre todos os dias:
acho que não tive meus filhos para ficar parindo os filhos dos outros, todos os dias.


É o que penso depois de ver e comparar os filmes "Palavra (en)cantada" e "Entre os muros da escola".

segunda-feira, 30 de março de 2009

Olhos fechados

Para adulterar um retrato se tira
a barba, o cabelo e o bigode, e se põe mais melanina.
Depois sorteia-se um tema, chacoalhando-se o saco, até cansar.
O tema é... movimento: escolhe-se, então, a técnica mais doce e mais ágil.
Mas, para o retrato ficar só adulterado, não partido, desenha-se com grafite, não tinta.
Depois é só lavar
e o retrato está novo.


Ana Claudia Abrantes
28 de março de 2009

cadastro

precisa-se de dois dedos para pensar em homem. dez para contá-los,
ao par.
mãos e braços para massageá-los, e só a esquerda para contar os sábios. com a direita, contar-se-ão os loucos, e seus menores estragos. um sexto dedo em uma das mãos seria
amor de contos
de fadas.



Ana Claudia Abrantes
28 de março de 2009

traição

dois dedos para pensar em outro
na própria cama.
voou como se fosse contigo,
de propósito.

um acinte contra a tua ausência.


Ana Claudia Abrantes
28 de março de 2009

terça-feira, 10 de março de 2009

Flor de cáctus


Deixe a morte sair no teu grito, moço.
A morte, certeza do teu corpo, começo da tua vida,
vidência pura para quem nela crê.
Para quem crê que a arrogância, o urro o tapa a náusea a dor no apêndice compõem bem.
Sabe que te cai bem? Um chute no ventre de alguém que te feriu?
Sabe? Uma porradinha com anel de ponta num rosto liso de quem ainda não sofreu?
Te cairia bem um lanho cruzando o rosto da ponta do nariz à extremidade contrária dos olhos, moço: um pouco de dor superada com o peso dos anos. Pena que dos teus olhos, do alto da tua inocência, alguma coisa também cairia... Mas não tem jeito não, moço. Teu destino, o meu, o dele ali é uma cama de hospital em quinze dias entre internação e uti: rápido, ou a faixa de pedestres(!), ou, ainda, o chão da tua casa mesmo. Reze a Deus que seja o chão da sala. No intervalo entre o grito da primeira luz e o tal último suspiro, te cai bem um pouco de desgosto, moço. Porque a capacidade existe, viu. De corromper, de se deixar corromper voluntariamente em jogos de vai-e-vem. Então desgoste, vai. Desgoste um pouco de si, do outro, do coelhinho célere, da Giovanna. Porque o branco se tinge bem com uma pequena mancha de vermelho. Porque os olhos até têm certa beleza atrás das marcas. Porque sorriem um pouco bem os dentes encavalados. Porque os velhos têm olhos de quem sabe. Porque eu adorava meninos de aparelho. Porque o chão seco e craquelado abriga também a flor do cáctus.
Ser flor, ser cáctus, lama, lótus, pathos, fato, beijo, flatos, marcos, jacksons, robsons, fábios. São todos chão e céu e a vida segue. E a vida, ora serena, ora selvagem, te forjará o gosto por tudo isso, menino. Mas não sem o grito. E é provável que, embora tudo, sejas feliz. Pelo mesmo brilho dos teus olhos, que também compôem bem.



Ana Claudia Abrantes
Em 09 d março de 2009

sábado, 7 de março de 2009

amor em tese

amores, em tese, são eternos. mas eternos mesmo são os amores findos.
amor em tese é amor que não está, que não tem gente, e a porta fica
batendo e abrindo com o vento.



Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Surpresa é...


Deliciosamente anacrônica: a professora ganhou flores em tempos de pura distopia.


(Retroativo a 19 de fevereiro de 2009)


Espelho escrito

Enquanto escrevo, espelho, e um espelho vai se desenhando à minha frente. Primeiro e sempre os olhos, com o seu desfoco úmido, sua quase interrogação de sobrancelhas. Alinham-se meias-verdades na curva dos cílios, e o tempo acumulado no canto dos sorrisos. Depois um nariz abafado, arfando por alívios vasoconstritores e odores frescos, no desespero de respirar de vida, ou de vício. Na superfície do papel, ora laminado, pouco a pouco vão ponteando os poros, cada dia mais abertos e alertas a toda oxigenação. Que aerada venha a vida contra a pele! Agora, no vidro, os lábios pálidos e finos palavream indelicadezas para se ouvir do espelho vivo, e a moldura cresce junto aos cabelos, enferrujados. Escrito isto, pronto o espelho está e o espelho é tudo, mas o que mostra é nada. Ao contrário embaça, se, de perto, o ar que se respira é quente e a superfície, fria ... ou refratária.
26/02/2009
Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

minimalista

quanto menor, melhor eu vejo, pois no silêncio é que entendo segredos e o estender de sentidos a palavras rápidas. nas reticências entendo grátis o mícrico gesto diacrítico. Queres o melhor poema e eu te quero mínimo.


Ana Claudia Abrantes (para Fabrício)

Delicadeza

Com uma delicadeza de penumbra em tarde quente, folhas batendo palmas ao vento. Com uma delicadeza de água de moringa, com a ponta dos dedos, tateando a boca e o verbo. Com a delicadeza de sempre e a promessa de nunca, ele me atropelou de repente.
E escorri feito cascata de que se desvia o curso, sem querer.
E o pior é que eu estava na calçada.


Ana Claudia Abrantes

tempo esgotado

Não no amor, não no ódio, não no tédio, não tão lento nem tão rápido, nem que o vento traga árvores para a sala, nem que o tempo se esgote eu vou escrever um poema agora.


Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

autoimagem (?)

séria eu pareço um macaco, rindo eu pareço coelho. subindo eu trepo que nem gente grande, cozinhando eu dou aula como ninguém. estacionando sou demais sambando e me orientando sou melhor perdendo. cem metros rasos sou melhor poeta, no nado peito sou mais peito aberto. mas, na sequência, choro feito bicho, catando cacos e comendo moscas, se em lealdade feito a de um cachorro, amando eu morro.


Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

certeza

o gênio da roda perguntou à princesa se ela queria um rei ou o mundo. a princesa respondeu: o mundo! e então virou rainha.


Sem data
Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A vala que corre pela minha aldeia


Oswaldo Cruz é uma “cidadezinha qualquer”. Ali se fica. Mas, quando se desce na estação de trem, inadvertidamente com o tempo nos olhos, o valão é o Tejo.

10/02/2009

Ana Claudia Abrantes


Minha casa de Oswaldo Cruz


Sobre orgulho e rejeição, sobre amor e ranço, gosto e afastamento. Sobre o contraditório carinho à Itabira de Drummond, seu contraditório (des)apego à cidade e sobre a sensação, que às vezes tenho (como o autor), de não estar aqui onde vivo, mas lá. A sensação do estrangeiro na cidade, mas o desgosto do nativo pela vila. É assim que sinto.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei os sacos plásticos molhados e imediatamente grudados à parede “para secar”; herdei o sacolé de manga com leite, queimando frio a ponta dos dedos; herdei refresco de leite de coco com açúcar e muito gelo. Herdei não gostar de “pamonha, fresquinha, pamonha!”, herdei suco de caju, suco de caju, suco de caju de garrafa e a troca por pintinhos amarelos. Pipoca doce de panela, banana picadinha no feijão, arroz e ovo, macarrão com feijão, feijão com abóbora e azeite, ensopado de batata com calabresa. Farofa, sempre farofa.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei a inveja do carrinho de rolimã dos meus irmãos, herdei ver briga de pipa, briga por pipa, briga de cachorro. Herdei pular corda “um homem bateu em minha porta...”, pular elástico, brincar de pique na rua com o gesso no pé, ser a última no pique-esconde do Carlinhos porque ele sabia mentir. Correr de bate-bolas e chorar se me pegassem, vestir um bate-bola no alto verão e adorar!

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei as coisas da casa completamente fora do lugar das coisas da casa, e herdei coisas da casa que eu nunca imaginava, coisas da casa que nunca faltavam, como uma caixa inteira de “liquid paper” fora da validade, comprada no Mercadão. Herdei nunca faltar material escolar, nem a nossa própria bomba de pneu de bicicleta, sempre alienada por um amigo dos amigos.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei porta de banheiro que dá sempre para a cozinha, varandinha que se transforma em quarto, quarto que vira sala, corredor que vira banheiro, cachorros que viram gente.

Herdei festa junina de rua e disputa por vender o correio do amor. Herdei pedir dinheiro para as obras da igreja no sinal, montar barraquinha e vender caipi-fruta, herdei dançar quadrilha com o vestido mais bonito, depois cair no conto da caipira pra sempre. Herdei pertencer a todos os que a mim pertenciam, rir a noite inteira com os amigos por não ter dinheiro para sair. E herdei interpretar as peças mais engraçadas dos meus dezesseis ou dezoito anos.

De Oswaldo Cruz, herdei saber que o que não é meu não é meu, mesmo que eu não tenha nada e os outros, muito. Herdei saber também que é melhor que tudo o que toco seja meu, mas que nem tudo que defino é fato. Herdei condescendência e todo o martírio que dela pode advir, herdei a vontade de sumir, o medo de me expressar, a covardia e as pequeninas coragens.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolhi bem ou mal, herdei a vontade de sair, a vontade de voltar sempre, o receio e o silêncio de voltar pra sempre. Herdei não saber o que fazer com as mãos e com os dias, a não ser escrever.

De Oswaldo Cruz e tudo o que nele escolhi, herdei ser a única menina, e a solidão. Herdei o silêncio. Herdei a vontade de ler livros, mas se acabarem os livros. Herdei ver tanta gente na esquina à toa, e o tempo passar sem o espaço. E o tempo passar sem que algo mudasse. Então herdei ser pedra e também não mudar, criar limo. Herdei até a pedra rolar.

E daí trago a lembrança de Fernando Pessoa: aquele rio que corre pela sua aldeia e que não é o Tejo, mas é mais belo que o Tejo, porque o Tejo não está ali na aldeia. Mas o valão, ao lado do “Buraco do Galo”, margeado pelas barraquinhas de cerveja e comida; o valão, aclimatado pelo batuque intermitente, o valão também não é, não pode ser o rio de uma aldeia. O valão é menos que “gente humilde”, é tão jeca tatu, tão churrasco, tão pronome neutro. O valão é o balcão da loja com a cerveja do fim-de-semana, é o salto alto e os vestidos colantes com decotes profundos; o valão é o Faustão, é o Big Brother Brasil, é o não-alfabético, é o pagode. Por outro lado é o samba que herdei dos pés da Cláudia e já levei para a Lapa, pra Tijuca, pra Santa Teresa e levarei sempre a todos os lugares do mundo, inclusive aqui dentro...

De Oswaldo Cruz e tudo o que me define, herdei aprender a orar e a apreciar. Não exatamente um Homem, mas as pessoas. E talvez não exatamente as pessoas, mas a vida. Não sei bem, mas hoje parece ter sido um dia bom, depois de atravessar o valão.

Ana Claudia Abrantes

10/02/2009

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Egoísta

Educar é pedra na pedra

e pedra na pedra sai faísca...

Educar é isca perdida e perdida,

engordando peixes.

Uma hora, uma cocoroca gorda morde,

e então todas as outras iscas valeram a pena.

Educar dá briga

de não querer sair.

Educar é egoísta amor pela vida, não exatamente pelo outro.

Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Rosa de pedra

Giovanna é uma rosa de pedra. Ela não tem sede. Como rosa é rainha, e como pedra é retesada. Giovanna é dura como a mais bela não poderia e, como pedra, ela teme a água. Teme o lume que dela a água faria: rosa fraca desfolhada. Botão hidrofóbico encharcado não se abre ou, se abre, quebra. Rosa quase verde, quase cálida, rosa sem jardim. Giovanna com água é pedra em genuflexão e, porque se inclina, perde sua natureza excêntrica de pedra. Uma pedra não se rende, Giovanna.

Giovanna não sabe que eu tenho sede. Uma sede infinita e ancestral. Não sabe que amor e água são a minha inteira natureza. E que todas as criaturas do mundo têm sede na minha memória.

Giovanna molhada chora. Ela está morrendo agora, bem na minha mesa, de tanto amor que eu lhe dei.

Ana Claudia Abrantes

12 de janeiro de 2009

Alguma aurora

Nunca estive tão encharcada

na água suja e fria das poças de verão.

Nunca estive tão encharcada

em sangria que sobrou de 2008.

Nunca estive tão encharcada em honey mustard.

Nunca estive tão mais que úmida, tão súdita, tão sem nome

Nunca estive tão puzzle

e, tão súbita, única poeta que sobreviveu.


Nunca estive tão só e tão em frente sem saber...

Nunca estive tão apesar de.

Nunca estive tão chuva, tão culpa, tão runas, tão tarô.

Nunca estive tão hídrica, em fim.

Nunca estive tão meio-centro, tão lenta: tonta, tão líquida: tinta, tão tom.


Nunca estive tão noite escura da alma e alguma aurora.




Ana Claudia Abrantes

janeiro de 2009


palíndromos

a coragem que vem da derrota é humana.

Ianai, Hanah, Ana, amar rama

a coragem que vem da derrota é humana.

Ianai, Hanah, Ana, amar rama

a coragem que vem da derrota é humana.

Ianai, Hanah, Ana, amar rama




humana é a derrota que vem da coragem

de amar.



Ana Claudia Abrantes

08 de janeiro de 2009