terça-feira, 26 de maio de 2009

rascunho

tento me sublinhar, mas vivo me rasurando.


Ana Claudia Abrantes

sem explicação

no poema, palavra com palavra dá uma química.


Ana Claudia Abrantes

xeque-mate *

quando minha palavra morde a entrelinha, fiz um poema bom e paro.


Ana Claudia Abrantes

xeque-mate

xeque-mate
ei, você que segue! não leia, não veja,
aquilo que te beija não é a virtude. deseja o poema primitivo ou o bom texto? pois meu fruto tem água ao morder; tem um gosto sumarento e cheiro de terra molhada escorrendo pela boca e pescoço. depois, não sei como eu mesma vou lambendo o veneno que me escorro dessa fruta doce, mas com a cica dos dias aqui. também da língua alheia sai palavra enfeitiçada, que me larga encantada na esquina. fico olhando frases que me dão as costas como tantas coisas belas pelas costas eu já vi, boas e ruins. risos. depois sinto o caroço_

o xeque-mate:
quando minha palavra morde a entrelinha, fiz um poema bom e paro.

Ana Claudia Abrantes
25/05/2009

Quase um haicai

"Você brilha feito estrela e provavelmente sempre soube isso." Então ela sorriu.
Para surpresa de todos, um mundo iluminava-se bem ali, bem dentro, bem... dela.
Aí ela agarrou a rabiola de uma pipa que passava e voou, pra ver o sol.
Mas o menino cruzou linha de cerol e ela caiu bem no meio do mar azul.



Ana Claudia Abrantes

à espera

aquele moço era uma ternurinha. mais uma pouco e ela
ficaria
para sempre
na fila.



Ana Claudia Abrantes

pelas entranhas

pela epiderme se sente a temperatura,
mas pelas entranhas é que se mede a natureza.
pela epiderme é que unguentos aliviam,
mas nas entranhas se dão milagres, como os filhos.

na epiderme, os perfumes e os cheiros sem banho.
nas entranhas, a memória disso tudo.

à medida que as entranhas plastificam as vontades,
a epiderme envelhece.
só quando as entranhas transcendem,
uma criança nasce.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 25 de maio de 2009

o que se é

ser não é ter sido
ter não é ter tido
ter sido não é será.
porque ser é nome próprio
que nunca será descrito
a não ser que seja tecido no dia
e se apronte na hora
quente, feito pão.



Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Estrela e Cruz

Quando um jovem que você ama demais morre, todos os dias, durante alguns anos, você pensa que ele está entrando pela porta e você sabe que ele está com a mesma calça jeans clara e uma daquelas blusas brancas de algodão de que gostava. Ele, como sempre, não chega em silêncio e já faz cara de susto-rindo por causa do seu cabelo, ou começa, mal entra, a contar uma coisa que aconteceu no trabalho. Sempre algo engraçado ou extremamente simples. Quando, todos os dias, você pensa isso, sabe que ele não vai entrar, mas, ao mesmo tempo, você não sabe. Mesmo. Porque pensar que ele chegou como chegava, fazendo o barulho do molho de chaves, segurando uns óculos escuros ridículos com os quais ele se achava o máximo, dá uma coisa. Quando você pensa que ele entra fungando discretamente de rinite alérgica, você pensa e sente uma ternura serena pela vida e pela vida dele e, nesse minuto, todos os dias, você é feliz. Depois, você monta um álbum fotobiográfico com a farda, com as danças, com o carro dele. E na capa do álbum há uma flor branca porque ele gostava de flores brancas. Quando você folheia o álbum, curiosamente você pensa que os passos atrás de você, você pensa que aquele barulho no portão, pensa que o carro chegando, pensa que aquela voz, você pensa que a voz do outro é a mesma, que o gesto dos outros três são tão irmãos, mas, talvez, nunca o mesmo coração... Você pensa, de verdade, em sonho agora e pesadelo ontem. E ele vai rir e dizer que você estava gritando, dizendo coisas desconexas num pesadelo do qual ele teve de vir te acordar. E te diz com carinho e aquela blusa branca que você volte a dormir.
Por muitos meses, anos, você pensa isso e gosta de pensar, porque pensar é um alívio, pensar te suspende no tempo e você vê de novo: a calça clara, a blusa branca, as flores brancas e cada coisa, como devia ser, em seu lugar.

Ana Claudia Abrantes
08 de maio de 2009