terça-feira, 28 de agosto de 2007

belvedere

belvedere é belo

vide o reverso do mergulho do estar de pé

olhando o mergulho que se queria dar na paisagem.

belo é ver o céu que se prolonga no horizonte

e que escorre até a copa das árvores.

belvedere é o caldo, a pasta, o caudaloso rio.

belvedere é sempre um convite ao suicídio.

e de intenso hipnotiza os olhos,

paralisando a voz ativa do ego.

única beleza toda que não se possui nem se alcança

porque, ao se alcançar, desmancha-se

em parte solta e insossa.

belvedere só o é assim:

intangível e muito ele próprio

panorama de si.

existência indenpendente

como deveria poder ser toda beleza.

domingo, 26 de agosto de 2007

desencontro II

o molde de um rosto em outro:

impossível respirar com essa máscara

o arco-íris não existe

mas está ali.

alfa e ômega


emplastra pastosa massa de maná na alma.

acende perene vela de beleza à mente.

inflama ígnea íris, hímem

dos olhos voluptuosos de hórus

no escuro tumulto, vulto

da alma emplastrada da massa de húmus.

sábado, 25 de agosto de 2007

brevíssimos V

tradução (ou auto-retrato)

pasto passo peco perco:
vaca louca puta distraída.


da natureza de todas as coisas
uma mulher que reúne ternura e desejo era sua amante por natureza.


no armário
queria tanto me foder
e não eu a você.

flores outras

--- ânus é espaço apertado entre um corpo e um botão de nada.

é o máximo, porém mínimo de tudo: não tem olhos, boca, mágica.

é trágico como todo fim em ágil desalinhar-se de bicho no cio

_ é frio.

mas cabe nos intervalos entre um não e um sim;

cabe no amor, no a-amor, em mim.

cabe e, com porta incólume,

comporta incólume o amor, o a-amor, a ti

nesse incognoscível jardim de flores.

construção

às vezes vida é embrulho

flecha crônica.

então é desfazer os nós

e levantar paredes do chão

e refazer a casa

pedra a pedra?

de corte e colagem.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O enforcado

A noite escura da alma

agatha negra de neblina em transe

em crise em filme de ficção natural

de um mal que a película não quer

suportar é além da força que está

sobre os pés.

A noite escura da alma

é azul marinho do escuro céu

sem véu de estrelas nem láctea

imagem de brancura diáfana.

A noite escura da alma

está dependurada e crucificada

como um cristo reverso enforcada

no meu eu sem outro meu.

A noite escura da alma

está presa na sala escura

projeção sem força de luz

sem auxílio sem nome sem giz

numa lousa queimada de cinza.

A noite escura da alma

não vomita não mija não cospe,

enjoa.

Agüenta, entope os filtros

da inocência e pureza, sem propósito

sem grito, sem festa, sem lenço

de papel ou abraço.

A noite escura da alma

acompanha passeia pastosa

sem ar sem aerado

arenosa noite escura sem fim.

A noite escura da alma

me gruda me prende me chama

me cala me dosa me rende

me doma com nojo me inflama

sem misericórdia sem mistério

sem verso sem prosa

sem tempo sem medo sem vento

sem cedo.

A noite escura da alma

agarra

como pigarro encarnado

na garganta sem voz nem

canto ou saliva

nem sonho nem nada.

A noite escura da alma

me convida

ao tédio à cerveja à igreja

ao samba ao beijo ao remédio

à tarja preta.

A noite escura da alma

me alucina

me dói a cabeça e vacina

a ingenuidade.

A noite escura da alma

me empurra me porra

contra a parede chapisco

me marca pro resto de mim.

A noite escura da alma

me conclui.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

das hipóteses

se eu tivesse te encontrado ontem

e viéssemos para essa varanda como agora

hoje à noite ainda seria lua cheia.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

signo e coisa II (ou explicação)

enseada era serenata líquida de som em harmonia
serenata era de vida, de deixe ir
enseada era serenata era esse
porque não sabíamos
e conhecer que uma enseada era aquilo a que não chamávamos
tirou de nós o mistério
e pensar levou-nos à metafísica alguma
e decifrar cegou-nos aos melhores códigos
de não dizer que comunicava
uma enseada de peso, tato, fluido, arrepio e cor.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

ambrosia

ambrosia soa em todos os sentidos:
açúcar deleite delicadamente vinho tinto demi-sec.
tamarindo e caramelo, yakult e caqui líquido,
e um cafezinho.

gustavo gustativo,
só mais uma provinha, pra eu limpar as papilas

sábado, 11 de agosto de 2007

signo e coisa


a palavra beijo não é molhada nem quente.

a palavra ódio é um mergulho nas vísceras

da imaginação incorrespondente ao ódio.

“desejo” é pouco para o que se sente

quando uma química ancestral

psicologicamente motivada e ardente

contrai-se em dois.

a palavra medo é o único contrário da palavra amor

e obviamente contrária à palavra entrega.

é carregada de ego, este que só se entrega no silêncio.

a palavra amor não é o amor.

Primeiro de maio

Bebê enterrado vivo pelos pais, ex-policial é acusado de chacina, cartola do Fogo chama torcida do Mengão de f.d.p. e mulambada, bando vendia vagas na faculdade por R$ 70 mil, traficante empresta arma para adolescente matar menino, Tati Quebra Barraco vai posar nua. Como? O quê? Onde? Quem viu? Quem viu um anjo, quem acredita? Se eu dissesse que vi alguém sorriria? Se o mundo implodisse em tons expressionistas e lentamente, surrealistamente, a bunda da Tati fosse escorrendo como os relógios de Dalí e como fazem com o tempo todas as bundas, se o bebezinho sobrevivesse... alguém acreditaria? Alguém ainda crê em milagre? Que lugar é reservado aos que ainda acreditam? Onde estão essas pessoas? Que lugar é reservado aos que não acreditam, mas não encontram lugar aqui? Como é possível encontrar lugar? Somos como ratos que se matam devido ao superpovoamento? Somos cachorros no cio reproduzindo comportamentos esdrúxulos, criando ninhadas que já nascem doentes? Estamos eternamente doentes, com um cancro instalado nas mãos, com estigmas de um Messias por quem esperamos, para quem oramos, por quem esperamos como a um autêntico Dom Sebastião? Sebastianismo de espera, sebastianismo de engorda para abater a carne de tantos bastiões brasileiros como eu que vão para o abate tão cordeiros de deus. E como porcos recebem o carinho, o beijo de Judas antes da morte: “apedreja essa mão vil que te afaga / escarra nessa boca que te beija.” Sem nojo agora eu o entendo. Entendo a marca de dentes que fica em quem foi mordido, entendo que uma gota de sangue entre minhas pernas é símbolo de uma dor inevitável. E como sangram os porcos traídos, como sangram as almas dos bebês enterrados, como sangram meninos mortos por adolescentes, sangro eu, todo mês, todo dia. Assim também, desde a Idade Média sangravam cristãos arrastados como o menino João. Tem fim? Tem solução? E, tornada uma gota vermelha, eu, que era azul por fora e vermelha por dentro, hoje entendo a paixão e a guerra que fazem o mundo procurar o sangue de que é feita a vida e a morte. Entendo que não consigo mais ser azul e me inclino, em vísceras avermelhadas. Mas os shows embalam o feriadão. O dia do trabalho será comemorado ao som de Daniela Mercury (foto) e Beth Carvalho, que fazem show de graça hoje, em Copacabana. Em Realengo, quem faz a festa é Elba Ramalho. Faz sol, temperatura amena no Rio e o primeiro de maio segue sem muitos protestos. Protesto eu. Muda, pálida, mulher. Mulher aqui no século XXI. Uma gota de sangue... coagulada.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

brevíssimos IV

haickryia (haicai do kryia)


um velho sábio

respira

uma gota volta ao oceano


viver

talvez esse o equilíbrio entre medo e aventura: ventura!


carla


quando seguro sua mão, sinto-me íntima de um milênio inteiro.

brevíssimos III

coan

Mena Barreto até a praia

minha oração pára

quando vejo o Pão-de-Açúcar.



dor do passado



dar as costas ao Pão-de-Açúcar


deixar ir II


mesmo que seja dar as costas ao Pão-de-Açúcar.

brevíssimos II

desejo

manuel, manuel

eu queria que o espírito de Deus voltasse a se mover sobre a face das minhas águas.



femina

amando amando amando almando almando almando a mando

de quem, puta quiu pariu?



amor

quase um paradoxo

um pouco de ácido no algodão-doce.

sobre a terra


espirais em diagonal

num plano acidentado de vontades

artes contrapartes e enredos

180 graus de evoluções

na avenida.

no limite da fronteira tênue

entre sim e não, céu e chão,

particulares partituras pequenas

num globo só não cabem.

o inferno e o paraíso de aventuras,

o fio inventado ou recriado

de dramas e ficções cruas.

verdades criativas e mentiras factuais

cada passo um desatino,

a cada escolha um destino.

sem opção no arbítrio

sem visão do outro dia,

sem academia.

via infinita

via líquida

via sem trégua:

gente naïf sobre a Terra.

fenda


afonia e rouquidão

disfonia cacofônica

som áspero em garganta árida

areia na deglutição

severo tom vazio de nota

música dissonante assonância obliterada

merda gástrica na mucosa: afta.

ácida faringe e laringe flácida,

claudicante, intermitente, melodia doente

anemia do timbre compactado em gás letal

ferindo a digital, maculando a marca

de uma canção que insiste em cantar

tenaz: hepática.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

poema de presente

(ou Para aquele ponto de Arnaldo Antunes)

A vida daqui é linda

talvez porque seja finda

talvez porque seja ainda

surpresa que não termina.

A rua parou na poesia

e pena que não seja minha

estrofe de presente é linda.

Talvez porque seja sonho,

emblema da Siqueira Campos

onde uma caminhada paralítica

aterrissa

no poema

e desfaz, por um segundo, o teorema: nó.

Golpe súbito, poema em pó

que se chupa como ki-suco,

deixando vermelha a língua,

vermelho o vestido e o dia

se eterniza na geografia

de uma estação

É verão!

Ana Claudia Abrantes

17/02/2007

Toda vez que desço na Siqueira Campos eu me deleito com aquele poema de Arnaldo Antunes. É um minuto de presente que eu retiro do meu dia, em dia ou atrasada, não importa, esse presente em minuto é meu. E assim o poema também fica um pouco meu. Um ponto dessa cidade que marca a minha vida, que me marca e eu também me dou de presente pra mim nessa hora. É um ritual, um segredo do meu espírito que se recusa a não se deliciar repetindo, repetindo em voz alta o suficiente para eu ouvir que a vista é linda, talvez porque seja linda, talvez porque não se veja e por isso mesmo seja mais linda... ainda.

incostura


desenho incompleto

beijo inconsútil iminente

desilusão do não

casa desconfigurada

desplanejada distante

divaga

nos desafios limite

tamanho castelo

de góticas fadas

desenho incompleto

constantemente divaga

roupas, bolsas, trovas, tralhas

imprescindíveis que se deixam cair

pelo caminho estranho, extra-ordinário

onde um louco impera suas ordens corretas

e incoerentes

desenho incompleto

círculo que se quer fechado

para abrigar o vácuo

como um básculo que convida

a ventania

desenho incompleto

99 peças

soltas no espaço de um intervarlo

desejo de consumir a falta

como fogo que consome o ar

ferramentas inúteis em terreno árido

paralelo infinito de caos e tédio

e suspensão em silêncio eternizado

no semi-círculo fechado

de um universo:

simples

complexo

espiralado.

por acaso


quando vejo o não escolhido

fazer sentido na narrativa

me ativa

uma luz

que deduz no distraído

enredo de uma linha

o equívoco abstrato

do interligado em foco

unívoco voto

de insegurança da vida:

surpresa caída no caminho.

psicografia


o vento depressa

o tempo me resta

na monotonia de horas vis

meu verbo febril

ferrugem

derrama o pouco que transborda o muito que escorre a imagem que esvai o doce que explode o corpo que dissolve a alma que corrói.

lado A/ lado B




elas abraçam e se movem fixas

mulher protege e pede proteção

mulher protegida entrega o perdão

do ventre a força esquálida

abriga, frágil, inválida

forminha anoréxica

do útero a fêmea apaga

a força o rancor as águas

masculinas

do lado escuro clara escuridão

dois tons predominantes, dor

do outro mundo imagem colorida

em tão clarividente amor

é frio

é festa!

é filho

é sexo!

é sombra

é brilho

é drama

é nexo

E em tal distância, o complementar:

na torçao dos abraços

o desalento, que um beijo ampara.

Ana Claudia Abrantes

(Sobre um abraço em Guayasamin e "O beijo" de Gustav Klimt... ou sobre tantas outras coisas também)

domingo, 5 de agosto de 2007

se soprarmos

da cal, sai nuvem
da nuvem, desenho
do desenho, idéia
da idéia, vento
do vento, tempo
do tempo, lembrança
da lembrança, beijo
do beijo, borboleta
que sopra onde quer.