quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Ícaro

"afinal somos todos pedras sonhando asas." nydia bonetti


Quando Ícaro caiu,
o mar se abriu para fechar-se quebrantado,
o vento fez a breve pausa entre as nuvens
que se racharam em frestas.
A luz do sol em flechas lúcidas, douradas,
tingiu de listras amarelas e azuis
o fresco céu e os morros.

Quando Ícaro caiu,
a terra deu seu espetáculo aos bichos todos
e todos viram um objeto ainda animado
arremessado do alto.
Era um dia claro.
Eu vejo as penas se soltarem dos emplastros
de cera em grude, inteligência e fogo-morto,
e feito chuva em forma de papel picado
penugens viram fogos vítreos, delicados
para o brilhar do dia:
foi lindo.

Quando Ícaro caiu,
também mediu
o sonho intenso de alcançar o que era alado,
o sonho bobo de se alçar do chão ao topo:
Ícaro era novo...

Antes de Ícaro cair,
não havia
um só grito suspenso pelo fato,
um só gemido, uma lágrima, uma lástima.
Era só brisa em harmonia e um querer bem.
E sempre o sol tingindo e, morno, tenazmente,
cobrindo a grama, a praça, a igreja, a escola, o pátio,
reaquecendo a pele, os olhos e a cabeça.

Quando Ícaro caiu,
ele não sabia
que era a última vez.




Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Uma história para Hannah ou Memórias para Adriano


(Lembra-te do Teu criador nos dias de tua mocidade, antes que venham os maus dias e cheguem os anos dos quais venhas a dizer "Não tenho neles contentamento." - Eclesiastes, cap 12, vers 1)




Para você viver a miséria
e se esfregar no chão como eu me esfreguei.
Para você tentar todos os caminhos
e seguir achando que nada disso faz sentido.
Para você consumir pouco e querer muito,
para você continuar querendo, e arder;
para você queimar até as próprias cinzas
e então atravessar sub-clinicamente, diariamente,
por sobre elas pelo tempo que restar.

Para você perder as poucas fichas,
para você fazer coligações involuntariamente
e intencionalmente gerar rixas
e sofrer.
Para você se ver perdida, inevitável,
humildemente enredada,
para você enredar e imiscuir ideias fixas
onde só havia vislumbres
e palavras vagas.
E ferver também o seu estômago
ou o seu ânus em coceiras matinais,
e os distúrbios notívagos do sono,
para você enjoar um dia,
para você também querer morrer.


Para que tudo isso seja feito e consumado
é que te deixo

antes

a minha alegria,
os meus olhos ternos,
o meu colo.
Mas esta minha condição também:
este relicário de medos,
esta caixinha de música que nunca ganhei,
esta caixa de cartas de amigos e antigos namorados,
este caderno de estudos de minha mãe,
estas anotações de poemas não paridos,
este status de feita para o amor, e o amor não existe,
estes retratos do meu pai - primeiro homem que não me bateu.

E para que você possa me acordar um dia,
às 06:18 da manhã com vontade de brincar,
para que outro dia você chore e seja intolerável,
para que eu mereça os seus melhores sorrisos,
para que um dia você não me queira muito
até que não me queira quase;
para que me magoe,
para que eu me doe,
para que doa tanto
e tudo seja você mesmo assim
e sempre e sem arrependimento,
é que te faço e que te crio.

Para que você sorria e creia
em Deus, nos dias bons,
antes
que eu me vá e você me queira toda,
antes, que o peso também se abata
sobre as suas horas, e sobre os dias
de sua pouca idade
antes que cheguem os anos dos quais você venha a dizer
"não tenho neles contentamento".



Ana Claudia Abrantes