sábado, 31 de maio de 2008

Bolha-de-sabão (trecho arbitrário)

Setembro já se aproximava novamente e agora? Como estaria a moça agindo? Como uma mulher sem útero sente a maternidade? E então uma sem vagina sente o amor? Melhor pra ela não sentir, e ter só a lembrança da cama com ele e dar a seus namoradinhos apenas um carinho sustentável por si sem avançar além do bom das coisas, das aparências, dos contratos, das pessoas. Egoísmo puro, mas seu desejo incompleto andava com ela então ela que lhe viesse cobrar a feminilidade. Ele a devolveria com juros e com vontade e com velas e lençóis de renda perfumados pelos amaciantes de roupa de mais qualidade e um pouco de essência de sândalo talvez. Maria Betânia cantando “tuas mãos foram minhas com calma” e Bina segurando as mãos dele, fixando-as com um olhar beirando o infantil era a ternura sexual mais impagável da sua vida. E depois disso mais nenhuma conseguiu ser mais bonita que Bina que, no entanto, decidiu abandonar o barco às três e meia da manhã de uma segunda-feira fresca de verão. Ele bateu a porta com a força que não foi suficiente. Não foi força suficiente para buscá-la no corredor e abrir o verbo de uma vez: mulher, não vá embora que eu te quero desse jeito mesmo casto dentro da tua falta de vergonha. Não vá, porra, fica aí até amanhã que a gente conversa; eu só estou com muito sono, eu tô ferrado, mas sei que amanhã não vou aturar a tua ausência.

Mas Arlequim era blasé, e nessas horas isso quer dizer do tipo normal. Que não faz tempestade em copo d´água, não faz escândalo, não vacila, não erra.


Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Existo sim; eu sou um unicórnio

Meu desafio é a verdade. É paradoxalmente muito fácil. É o desafio de quem já não tem nada. A verdade vos libertará, mas a liberdade pesa mais que uma violência. Tratou-me como se fosse virulenta, enquanto sempre te fui mais inofensiva que uma fada.

Existo sim; eu sou um unicórnio.

A miséria os unia. O pouco que se deram era o tudo que receberam da vida. Eu me apaixonei pela miséria. O pouco que tive é tudo o que tenho.
Eu te amo. Amém.
E esta é a minha oração.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

o corpo de um poema (ou rimas no corpo II)

na pele da linguagem tangendo um poema
emprestando a pele do corpo a versos caros
pele e papel penugem - membrana e lousa
arrepiando-se ao toque de uma pena

do mais raro pergaminho o verso livre e branco,
abrindo as pernas como se abre livro novo,
cresce sem medida na oficina

esfregar papel e corpo, tinta fresca e pele úmida
lítero-sensório exercício clínico
daquele que se cura e se curva na poesia



Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Bolha-de-sabão (primeiro trecho arbitrário)

Por que eu fui botar outra lá? Ela não quis levantar naquele dia de manhã. Chapada demais alegou que seu traje alcoólico não combinava com a luz do dia, vampira. Sugou sua carne a noite toda e nunca dava beijos leves: mordidas. Com raiva de cão. “Você não vai ficar aqui na minha casa, enquanto eu vou trabalhar!” Uma mulher com coxas, olhos e vagina, mas aquela voz, aquela voz de travesti, saindo talvez pelo nariz, pelo ouvido, pelos olhos (não podia ser pela boca), ressoando num agudo dissonante e afetado de “docinho, meu docinho, mas eu vou sair assim? À noite, tudo bem, mas agora são seis horas e vou parecer uma prostituta que você pagou. Não vou”. “Vai!” Ele nem a conhecia, pô, que loucura! “Te empresto uma camisa minha, te dou.” Não quero ver essa mulher de novo. “Não posso sair sem minha chave e a porta não tranca se você só bater.” “Queridinho, podemos dar outro jeito...” “Sai!” Mulher empurrada (não, ele não é violento assim), mulher puxada escada abaixo com o salto agulha quebrado no penúltimo degrau. “Filho de uma...!” E aquela voz gritando, era uma bruxa? Chega. Ela não protestou mais. Lembrou do primo que sempre a batia na infância, dizia-lhe as piores ofensas de criança: bruxa, moura-torta, diaba, burra, amarela, amarela, amarela! O primo puxando-a pelos cabelos, encostando sua cabeça no chão. Apoiava os joelhos no rosto magro dela e dizia: “Pede arrego, pede arrego!” Ela pedia. Afastava-se e começava: “Seu galinho, seu galinho!”. O xingamento que sempre ouvira da mãe no feminino podia muito bem ser usado para o primo que a odiava. Galinha. E ela o amava. Ela o amava tanto. Na mesma medida do ódio dele.

Afastou-se. Arlequim desceu a rua. Ela se afastou com um nó fino na garganta, refletido no umbigo atado a um piercing de borboleta brilhante. Era linda, era linda, sim! E os cabelos de juba loira em tons desiguais foram acompanhando o passo do Arlequim de longe. Dez metros mais ou menos de uma distância regular e crônica até o ponto... Ponto ponto ponto ponto. Em nenhum momento ele olhou pra trás. Cretino! Quer dizer, impotente! “Impotente! Brochaaaaaaaaa!” Da janela do ônibus ele viu aquela leoa desgrenhada gritando seu nome, xingamentos vulgares como a cara dela, perto da banca de jornal. “Brochaaaaaa! Você é um mole, não sobe.” Teve ímpetos de descer e dar um soco na boca daquela vadia e quebrar os dentes dela. Aquele sorriso amarelo de cigarro amarelando a pele amarela. Amarela! Amarela! Amarela! E o primo sobreposto ao Arlequim, gritando amarela, e o Arlequim parado estupefato, olhando pra ela amarela. Galinho! Amarela! Galinho! Amarela! “Brochaaaaaa!” E o Arlequim mudo, vingativo dá um sorriso parental pra ela: amarela...

Finalmente Arlequim saltou na Rio Branco com a imagem de um loira magrela enfiada numa saia-lenço preta e mini, blusa de cetim grafite. O olhar havia acompanhado a lombriga loira que ele havia levado pra cama. Vergonha. Fiasco. Tinha de parar de beber antes de levar alguém pra sua cama. Agora aquilo. Vergonha. Foi coisa demais aquele escândalo no começo da manhã. Aquilo combinado a uma dor de cabeça de Bohemia, Itaipava, Skol, Sol. Desgraça, não podia misturar nem a marca. Vadia. Tinha de ter descido do ônibus e chutado a barriga de borboleta até ela perder o útero. E aquele suor frio, aquele sangue-frio à força. Aquela serenidade extraída a fórceps só pra não passar mais vergonha e quem sabe silenciar aquela magrela matraca. Era muito. Só podia dar naquele escroto daquele faniquito que ele tinha e que o acompanhava vida afora ainda em segredo. Vadia, ela me paga essa crise. Se parar na minha frente eu chuto.


Ana Claudia Abrantes