sábado, 27 de dezembro de 2008

Gavetas


Aguardar e guardar são coisas parecidas? Aguardando novas fotos. Guardando boas lembranças.




Ana Claudia Abrantes


Novos vícios

Vítimas são passivas até um ponto. Cínicos são ativos no silêncio. Na delicadeza ou no tapa de palavras sempre há: um outro negócio, outra história, outros motivos. E o segredo é descobrir nunca ou inferir sempre
Novos vícios.



Ana Claudia Abrantes

sábado, 20 de dezembro de 2008

Sobre crimes (para o Nilson)

Há testemunhas para crimes. O lado esquerdo da cama vazio e nunca mais um lado molhado dele. A toalha agora sempre no mesmo lugar. A cortina queimada do cigarro e os nomes do casal em todos os CDs.
Ou menos que isso, vestígios: uma brisa correndo entre a janela e o basculante sempre às cinco e quinze antes de ela chegar. O cachorro que se ergue às cinco e vinte e ainda espera que a porta... E as begônias secas há um mês e a empregada que não canta mais e a janela fechada, a cortina fechada, transpondo a noite para o quarto às três da tarde.
E tudo que espera é testemunha de um crime. Anunciado. Postergado. Consumado.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

pedido

construir um amor sem crime. amar sem vítima. começar a viver sem grito.
são coisas impossíveis?


Ana Claudia Abrantes

Simulacro

Ela esticará uma esteira de palha mofada em um quarto à meia-luz. Um incenso de noz-moscada anafrodisíaco queimando na janela. Ao lado da esteira, uma estátua de Shiva que ela chama de Jesus. E na chaleira, o mais novo chá oriental de gengibre e alfafa. Escolherá sua melhor lingerie de Friburgo, mas não sem antes besuntar os grandes lábios com hidratante de morango e champanhe. Até ficarem vermelhos como rubis muito caros: uma chave de pernas e de faro para velhos jogos de corpo e coração.

E, depois de tudo,
A luz do meio-dia será clara demais.



Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

tombo no escuro II

sabendo-se gota, pende.
quebrando na terra, some.
no frio da terra é escuro.

desaparecendo.





Ana Claudia Abrantes

canção de amor

sou grave, mas minha voz é aguda e se desfaz mal toca a língua. sou grave, mas sorri um pouco, porque também se chora rindo. grave idílio de menino contra o estéril som de um grito.
e se a música acabou, porque é que o compasso fica, batendo crônico no meu peito?





Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Passo de mestre II

Nem tudo vale a pena, mas tudo vale a pena se ao menos vira poema.


Ana Claudia Abrantes Moreira

Passo de mestre


Um dia é hoje, amanhã é depois. Um dia também pode ser futuro e depois pode não dar tempo. Tarde nem sempre é. Para o amor existe o sempre. E o nunca. Amor que nunca morre se transforma em amizade, ou chuva. Contra a vidraça eu boto. O meu nariz. E vejo os pingos escorrendo junto à minha. Coriza. Meus olhos hoje estão molhados. Ano que vem, cansados. Mês que vem estarei. De férias. Semana que vem recupero. As notas. Só mais um dezembrinho e então. Eu passo.

Ana Claudia Abrantes
09 de dezembro de 2008
19 horas e 8 minutos
É Fernando Pessoa quem me inspira essa, ele que nunca conheceu “quem tivesse levado porrada".

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Hai cai?

Adoro cores mesmo na sombra, gosto da penumbra e da umidade. E do limo que cresce em volta e faz escorregarem os pés. Tombo no escuro.



Ana Claudia Abrantes

domingo, 7 de dezembro de 2008

Desvio

O poema
no caminho certo protocolado fica até bem, mas pálido. Cacofônico e despetalado tem mais o gosto da tragédia que sigo, ágrafa. Meu caminho é o erro.


Ana Claudia Abrantes

brevíssimos IX

dos desejos infantis

eu queria que só uma estrelinha bastasse a um buraco negro.




das inutilidades

na guerra entre deuses e titãs
uma ninfa é belíssima.



Ana Claudia Abrantes

sábado, 6 de dezembro de 2008

Macacos




(Trechinho inspirado em Lisete)

Ele disse:


_ Meu amor, você parece um macaco!


Ela fez que não gostou, mas ficou orgulhosa em silêncio, pois nunca tinha se sentido tão humana.
Ana Claudia Abrantes
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Essa é a Lisete do conto "Macacos", contido no livro A legião estrangeira, de Clarice Lispector. Parabéns aos que contaram a história e a todos que a descobriram.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Não-frases

Naquela moça, a multiplicidade dos nãos sucessivos
que criaram um sistema esperto de defesa e distanciamento
que foge das idiossincrasias daqueles espíritos
que se destacariam na multidão das modas
que aprisionam as mentes mais vaidosas
que não seduzem aqueles espíritos que
se destacariam.
Naquela moça, a multiplicidade do não
que gerou a multiplicidade do quase
que não a levou a lugar algum que
fosse um pouco sólido.
Naquela moça, o não que o medo fez
que não voltasse os olhos.
Naquela moça, o não
que não sabe que não sabe nada.


Ana Claudia Abrantes
01 de dezembro de 2008