segunda-feira, 30 de março de 2009

Olhos fechados

Para adulterar um retrato se tira
a barba, o cabelo e o bigode, e se põe mais melanina.
Depois sorteia-se um tema, chacoalhando-se o saco, até cansar.
O tema é... movimento: escolhe-se, então, a técnica mais doce e mais ágil.
Mas, para o retrato ficar só adulterado, não partido, desenha-se com grafite, não tinta.
Depois é só lavar
e o retrato está novo.


Ana Claudia Abrantes
28 de março de 2009

cadastro

precisa-se de dois dedos para pensar em homem. dez para contá-los,
ao par.
mãos e braços para massageá-los, e só a esquerda para contar os sábios. com a direita, contar-se-ão os loucos, e seus menores estragos. um sexto dedo em uma das mãos seria
amor de contos
de fadas.



Ana Claudia Abrantes
28 de março de 2009

traição

dois dedos para pensar em outro
na própria cama.
voou como se fosse contigo,
de propósito.

um acinte contra a tua ausência.


Ana Claudia Abrantes
28 de março de 2009

terça-feira, 10 de março de 2009

Flor de cáctus


Deixe a morte sair no teu grito, moço.
A morte, certeza do teu corpo, começo da tua vida,
vidência pura para quem nela crê.
Para quem crê que a arrogância, o urro o tapa a náusea a dor no apêndice compõem bem.
Sabe que te cai bem? Um chute no ventre de alguém que te feriu?
Sabe? Uma porradinha com anel de ponta num rosto liso de quem ainda não sofreu?
Te cairia bem um lanho cruzando o rosto da ponta do nariz à extremidade contrária dos olhos, moço: um pouco de dor superada com o peso dos anos. Pena que dos teus olhos, do alto da tua inocência, alguma coisa também cairia... Mas não tem jeito não, moço. Teu destino, o meu, o dele ali é uma cama de hospital em quinze dias entre internação e uti: rápido, ou a faixa de pedestres(!), ou, ainda, o chão da tua casa mesmo. Reze a Deus que seja o chão da sala. No intervalo entre o grito da primeira luz e o tal último suspiro, te cai bem um pouco de desgosto, moço. Porque a capacidade existe, viu. De corromper, de se deixar corromper voluntariamente em jogos de vai-e-vem. Então desgoste, vai. Desgoste um pouco de si, do outro, do coelhinho célere, da Giovanna. Porque o branco se tinge bem com uma pequena mancha de vermelho. Porque os olhos até têm certa beleza atrás das marcas. Porque sorriem um pouco bem os dentes encavalados. Porque os velhos têm olhos de quem sabe. Porque eu adorava meninos de aparelho. Porque o chão seco e craquelado abriga também a flor do cáctus.
Ser flor, ser cáctus, lama, lótus, pathos, fato, beijo, flatos, marcos, jacksons, robsons, fábios. São todos chão e céu e a vida segue. E a vida, ora serena, ora selvagem, te forjará o gosto por tudo isso, menino. Mas não sem o grito. E é provável que, embora tudo, sejas feliz. Pelo mesmo brilho dos teus olhos, que também compôem bem.



Ana Claudia Abrantes
Em 09 d março de 2009

sábado, 7 de março de 2009

amor em tese

amores, em tese, são eternos. mas eternos mesmo são os amores findos.
amor em tese é amor que não está, que não tem gente, e a porta fica
batendo e abrindo com o vento.



Ana Claudia Abrantes