terça-feira, 25 de março de 2008

Mas

(Só um comentário de fim de noite)

Dois mendigos deitados face a face com as pernas etrosadas e todo o corpo parecendo se corresponder. Olhavam-se fixamente como se olham todos os enamorados de fato. Acariciavam-se no rosto. Ele falava enquanto enroscava os dedos nos cabelos dela e ela, feminina, escutava.

Nada parecia neurótico, apesar. Um homem, uma mulher.

Difícil distinguir os sexos, olhando-se de longe. Uma magreza os uniformizava e o cinza dos shorts fazia um só borrão na calçada cinza. De perto, os ossos da face muito angulosos dele e algum quê de feminino no contorno das pernas dela é que denunciavam a sina de cada um.

Toda marquise que acolhe mendigos é testemunha desse sistema paralelo. Essa ficava em frente ao shopping, que, com suas lojas semi-cintilantes, iluminava fracamente aquela cama. Às nove da noite ainda há tantos passantes e os dois se restringiam ao namoro singelo do olhar porque não tinham pressa.

Fiquei pensando nas ausências daquele universo e não pude imaginar a intimidade sem banhos, as micoses, a desnutrição, a fome, e ainda assim... Um beijo sem o hortelã matinal, sem a fumaça da noite, um beijo pastoso de depois da refeição caçada... Uma boca sem nexo, carregando o sexo sujo nos dentes, na saliva; o orgasmo grosso da epiderme impermeável, mas... Os cheiros reais, a total ausência de perfumes, a volta à terra e à areia molhada, o asfalto frio, o vento de barata do bueiro próximo, contudo...

Minha reflexão durou o caminho até o carro. Em tempos de “amor líquido”, aquele anoréxico amor cinza reagia. Ele registraria melhor na calçada a intrínseca relação entre a miséria e as humanidades a que fui me sentindo condenada... e cada dia mais sem as antigas palavras. “Amar em diagonal é coisa mais esquisita, no entanto...”

domingo, 23 de março de 2008

talvez

talvez o medo seja azul escuro e a vida, vermelha.
qual a cor se alguém beijar o pânico?



Ana Claudia Abrantes

etérea

etérea. éter. eternamente
terna.
e ternura
é ter
eternidade.



Ana Claudia Abrantes

brevíssimos VIII

retrato (interpretando cecília)

a tristeza afetara a fisionomia e então a maturidade se instalou no rosto como nunca e para sempre.



definição

toda definição é pretensiosa.


tristeza

meus olhos ficaram azuis-marinhos.

segunda-feira, 17 de março de 2008

dos incêndios

favor não jogar pessoas na fogueira.
se a combustão espontânea é iminente, até um naufrágio é tábua.
mas mantenha fora de seu holocausto o outro.

Ana Claudia Abrantes

brevíssimos VII

da planta

pensa bem. você gosta de ser cortado? gosta?




violência em uma nota

e então o baobá virou bonsai.




química

fácil como um sorriso
face a face a ti
facinho

Ana Claudia Abrantes

epitáfio (um resumo)

depois.

depois me deixe só a saliva no canto da boca

que eu sei ficar com o que me resta e que é só meu.


Ana Claudia Abrantes

epitáfio


depois.

depois me deixe só a saliva no canto da boca

que eu sei ficar com o que me resta e que é só meu.

foi só aqui que aconteceu,

foi só aqui que a vida fez seu universo em fábula

embrulhado em reluzente bolha de sabão que explodiu do amanhã.


Ana Claudia Abrantes

três e quatro

abra-se o sol para a lua entrar abra-se o mar.

abra-se o calor e instale-se o frio abra-se o rio.

e que este amor abra-se assim e vá.

vá adiante além embora em boa hora.

que ele desista e não insista amor meu

louco como espada em algodão inofensivo

manchando de vermelho sem sentido a cerda a lã o vinco

da pele pálida de esperança retardada em biênio.

a bienal do amor na minha casa

é onde o coração mancha de ácido a entrega dos vazios.

amor que se perdeu em suspensão sem nome,

amor que se esqueceu de acontecer

como mentira quintanesca e tão inocente

porque mentira de criança em quem se crê.

que venha a idade, me invada, arte

de fazer do tempo o aprendiz do torto irregular

para acolher a curva e o que há, depois.

depois me deixe só a saliva no canto da boca

que eu sei ficar com o que me resta e que é só meu.

foi só aqui que aconteceu,

foi só aqui que a vida fez seu universo em fábula,

embrulhado em reluzente bolha de sabão que explodiu do amanhã.



Ana Claudia Abrantes

domingo, 16 de março de 2008

um lugar de igualdade


Fora

tudo lembrava antítese.

tudo lembrava pequenez e hipertrofia.

o eclipse do sol no teto e um vento quase a derrubar os passarinhos.

Ali

tudo lembrava que virava enguia

esguia, esquiou entorses, patinou em lagoa vasta

fluida como água que toma a forma do continente.

espalhar-se para ser elástica,

contorcer-se para alongar-se.

para tomar espaço, gaseificar-se.

para perder-se, fragmentar-se.

escorrer, permeando o concreto,

infiltrar as muralhas do outro.

desviar contornando, abraçando

a extensão dos volumes, inclusive os enormes _

como água.

e achar-se enfim caco a caco, pedaço de não e sim.

e então igualar-se, ser mágica:

expandir-se do chão ao teto, nivelar-se:

dar ao corpo justamente

a dimensão do pensamento.

Ana Claudia Abrantes

(março de 2008)

rimas no corpo

(das frases: Degusta-me ou te decifro)

rimas no corpo

no topo

da pele

escreve poemas

nas mãos

nas palmas

nas nádegas

nas maçãs

do rosto

o corpo

um altar

uma oferta

ao somelier do seu

corpo.


Ana Claudia Abrantes

(março de 2008)

(Inspirado no resumo do filme “Livro de cabeceira”)