quinta-feira, 26 de junho de 2008

tristeza (alerta)

preparar-se para nascer órfã
preparar-se para morrer grávida
e todas essas coisas que acabam com os nossos sonhos


Ana Claudia Abrantes

domingo, 22 de junho de 2008

Plano

Corria por uma estrada larga correspondete à dimensão de duas estradas expressas paralelas. Era estranhamente arborizada. Dos dois lados, fileiras de árvores com equivalente distância entre si, mas total ausência de folhas, flores, verde. Troncos retorcidos deitavam-se sobre a estrada sem tocar o chão; outros tantos estendiam-se pelo alto como se intentassem alcançar a estranha fileira do outro lado. Árvores de um outono eterno.
Era obrigatório correr pulando os galhos e abaixando-se às vezes diante de outros tantos porque, apesar da extensão da estrada, as árvores pareciam idosas teimosas em ocupar o espaço que entendiam como seu. Corria. Atrás de si, a uns cinqüenta metros, vinha uma moça gorda, de cabelo preto e preso no alto da cabeça, uma blusa quente, cinza, uma calça jeans muito apertada ao corpo. Ela corria e chorava ao mesmo tempo porque sabia que não conseguiria.
Eles vinham na direção das duas e a primeira pensou em voar. Começou a levantar do chão, erguendo-se a uns três metros, correndo ao mesmo tempo. Tinha a esperança de que se salvaria assim e sofria pela garota gorda que chorava insistente, atrapalhando uma corrida inútil porque a própria se sabia inevitavelmente capturada. Mas como nem todos podem ser salvos, a primeira tratava de manter seus três metros acima do chão. Sem conseguir sustentá-los por muito mais tempo, rezou para que a futura queda fosse em lugar seguro, como devem rezar os pára-quedistas iniciantes. Teve certeza de que perdia o controle do vôo quando começou a se sentir inclinando, o corpo não voava mais ereto. Agora tombava a cabeça e o tronco como em decúbito ventral e então só via a copa das árvores ressecadas. O céu tinha um crepúsculo de um cinza chumbo inusitado em crepúsculos, com a luz do dia soltando-se em frestas de prata entre nuvens pesadas. Naquela posição inclinada, a moça não via o grupo que a perseguia nem a estrada erma. Via outra coisa, algo que lhe parecia uma pintura tenebrosa, só que rápida: galhos marrons, retorcidos, ressecados em primeiro plano sobre um fundo pesado de prata e chumbo. Em alta velocidade, era tudo assustador.

Caiu em frente ao número 181 de uma rua residencial. O rosto estava marcados pelas pedrinhas do chão. Viu o muro de tijolinhos pintados de abóbora. Na parte superior do muro, grades pontiagudas de ferro mal pintado de cinza. Outras pessoas estavam paradas (também com o rosto marcado pelas pedrinhas) em frente ao número 181 com uma expressão de sem entender.
O robusto pastor-alemão da casa os recebeu com lambidas dóceis e inocentes para seu espanto. Perceberam que o carro que se aproximava era dos donos da casa porque o cão imediatamente se distraiu, pegou um pintinho de borracha velha e começou a abanar o rabo, excitado, esperando o carro. Quando os criminosos saltaram, alguém disse que era tarde e ela subiu na única coluna sem grade do muro para preparar o vôo, mas um deles foi mais rápido e sacou o revólver. Imaginou-se tragédia de pássaro ferido em pleno vôo, tiro bala projétil de asas em disparada ao chão. Tão veloz quanto o movimento do criminoso foi o seu recolher de asas.
O marginal, em gestos treinados de quem sabe manejar malabares, trouxe todos com uma linha amarrada a seus corpos até o muro, virando e desvirando cada um como marionetes. Com a mesma linha que os circulava, obrigou-os a sentar, levantar, bater contra o muro, até que os outros do bando soltaram balões de aniversário e os fios imediatamente se soltaram. Os balões eram coloridos. Serpentinas voavam alegres, confetes se amontoavam no chão e, sem cumprir ordens, deveras cumprindo, foram brincar com os balões, livres e felizes. Parece que foi sua última felicidade.
Depois entraram no número 181, coagidos. Puseram todos a serviço, um serviço que nunca se cumpria, e rasparam-lhes as cabeças. Obrigaram o grupo a vestir roupas padronizadas masculinas. Mas Renata era corpulenta, e o desenho dos quadris e dos seios saltava por baixo das roupas.
Estavam em tédio escravizado, sentados, esperando algum arbítrio, quado o vulto dele entrou no lavabo onde Renata se banhava. João disse que já sabia daquele envolvimento com um orgulho ferido de quem gostava de Renata. Mas a moça ouvia e intuía que não havia nada entre Renata e ele. Quando ambos ouviram barulho de objetos caindo e gritos abafados pelas mãos enormes dele, tiveram certeza do estupro de Renata. João desceu da sua arrogância de coração partido e choramingou, fraco: "Mas ele vai acabar com a vida de todos nós." Nesse instante, Tereza descia as escadas que ficavam na lateral do banheiro e levavam ao segundo andar. Vinha amparada por Joana, ambas com uma expressão terrível que denunciava que Tereza havia acabado de ser violentada também. O dedo indicador de sua mão esquerda estava quebrado e ela o segurava com uma espécie de dignidade como se tivesse se saído bem do pior e tivesse conseguido salvar alguma parte íntegra no corpo.
Nisso chegaram os outros homens, carregando enormes bolsas de ginástica. Eram altos e um deles olhou para ela. Até então conseguira passar despercebida com seu corpo franzino disfarçado pelas roupas de menino, a cabeça raspada, os olhos sempre apertados. Mas ele viu, pela linha entre as pálpebras, os seus olhos verdes. Então viu-se em perigo tátil, real pela primeira vez, e começou a planejar sua fuga que antes parecia impossível. Desespero. Os vizinhos tinham vários cachorros e pareciam amistosos... Sua capacidade de voar estava irremediavelmente travada.

Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 19 de junho de 2008

tpm




queimava-me pela manhã.
à tarde vejo uma flor: eterniz0-me.
que dirá, à noite, quando o o sangue tingir meu lábio
de vermelho?
e eu deixar de ser mãe mais uma e uma vez?


Ana Claudia Abrantes - poema
Jacques Kalbourian - imagem

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Á noite (reflexãozinha...)

Quando perdi, senti a língua mastigar a terra molhada misturada ao sangue entre meus dentes. Meus olhos se perderam num desmaio. Despertando, confirmei que tinha perdido mesmo e tornei a dormir pra esquecer. Mas o sono não apaga qualquer coisa, então esforcei-me para me manter alerta no escuro. Abri os olhos para dentro, tive medo. Chorei primeiro delicada depois prostrada de uma vez. Assustei-me, mas não corri. Vieram-me todos os enredos e poemas levantar-me e o desencanto em que me encontrei já não era uma desgraça. Foi assim que peguei gosto às derrotas.
Agora suspendo castelos de cartas no vento, ancoro barcos de papel, ilumino o dia com lanternas. E em meu caminho fico esperando estrelas que eu não deixo brilhar.

(Depois de ler Noite sem lua, de SMS e TS)

Ana Claudia Abrantes

de novo


vai nascer outro homem

e celebraremos sua morte com a euforia dos corredores

que se jogam nos braços da torcida.

vai nascer outro homem

e celebraremos sua morte com gargalhadas

possuídas pela dor.

e o sangue manchará a lágrima de liberdade

e o sangue banhará o corpo do morto

tal como e também

batizará o novo homem.

e o sangue forjará um novo homem de água fluida,

de água cristalina.

Ana Claudia Abrantes

O caminho reverso: de borboleta à lagarta







Uma sanguessuga desprende um ferrão. E embora poucos tenham visto a agulha desta que aqui vos fala, ela fere. Mas é teu próprio incômodo o que me desarma e quebra minha agulha, coisa que tua indiferença não conseguiria. É que entre a mordida e o beijo a distância é mínima. E se uma gota de vida pendesse de tuas narinas símias para meus dedos, eu tocaria de leve, com (nossa(?)) compreensão, teus olhos quem sabe semi-cerrados aos meus medos/defeitos humanos, caso não tivesses insistido, "até então", em me veres ninfa.

Ana Claudia Abrantes