sexta-feira, 31 de julho de 2009

estrelas e cruzes





papéis soltos não são contra o vento,
voam as pernas dos capoeiristas,
o calor sobe em ondas
e alguns cantam para subirem os espíritos.

por outro lado franjas são pendentes,
as águas sempre escorrem
e há os que temem o céu descendo no último dia.

embora nem sempre as palavras deslizem,
a gravidade chama até a luz e mais nada escapa.
porque a vida é feita de norte e sul, estrela e cruz
e até mesmo um anjo,
um dia,
cai.




Texto - Ana Claudia Abrantes
(Escrito na mesma ocasião de "Estrela e cruz", mas reescrito agora.)
Fotos - Agatha Franco
São João Batista - Botafogo - Rio de Janeiro

quinta-feira, 30 de julho de 2009

brevíssimos X

não peremptório

do gelo seco não sai água.






sobre desistir

en saio saio saio saio saio




Ana Claudia Abrantes

Coma

Ratos alimentados podem fazer parte da história. Os ratos chegam antes do jantar e ficam à espera.
Sempre que se está à espera uma sombra é figura.
Quando vultos de farelos caem da mesa eles correm.
Mas os farelos eram só a purpurina se soltando da toalha decorada.

Hoje nem tudo alimenta, mas tudo é brilho.
E todos os olhos fotofílicos se apertam no desespero das risadas.

Tudo que espera subsiste, enquanto tudo que queima morre mais depressa.
Ratos não queimam espontaneamente.
O jantar acabou e eles sobem até a tábua.
Os talheres frios, os copos abandonados, os restos inanimados, mas ainda odoríferos: subsistência.
O jantar corre sem o tilintar de garfos e pratos; não é uma festa.
E se come de pé, fazendo pequenos bolos com as mãos.
Há muito as velas se apagaram.
O silêncio escuro do jantar não abre sorrisos.



Ana Claudia Abrantes

Renitência

Formigas fazem ninho nos meus pulsos.
A água quente do chuveiro as elimina,
mas os buracos ficam.
Formigas fazem ninho nos meus pulsos.
A água quente do chuveiro as elimina,
mas elas sempre voltam.
Formigas fazem ninho nos meus pulsos.
A água quente do chuveiro as elimina,
mas não tapa os buracos.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Espelho d'água em temporal

A água do rio correndo vai escorrendo a copa das árvores.
Mas lá no alto as copas continuam ilhadas diante das margens.
É que as árvores não são águas e vão velozes,
mas para o mesmo lugar de onde saem.
E elas nem sempre desenraizam, só ficam instáveis.

No espelho caudaloso, as árvores
são quase pastosas.
Na cascata célere, as árvores
saltitam.
Geralmente as copas não partem, são porto
para homens e pássaros.
Até que o rio espelho bota corpo
na tempestade
e reflete, fluvial, o movimento secreto
dentro delas.



Ana Claudia Abrantes

Magoado

Até nisso era original. Saiu batendo a porta com o pulmão partido, só foi chorar no nebulizador.






Ana Claudia Abrantes

Negociando

Penetro inalante,
adnax vasoconstritor,
bronquivita fluidificante,
soro fisiológico hidratante,
dipirona analgésico,
diclofenaco potássico anti-inflamatório,
mylanta plus digestivo,
bicarbonato de sódio básico:

São as minhas condições.




Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Perdida

Quando a pedra derreteu, não havia, na terra, poros para absorvê-la. A pedra ficou escorrendo, quente e fluidificada. Chegando ao nível do mar, o oceano ficou morno por alguns dias, mas a pedra resfriada
virou ilha.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Inverno

- Está muito frio mes-mo agora ou eu estou com febre?
- Está frio, mas não muito.
- E se eu estiver com febre? Você fala com mais carinho ou eu vou ter que implorar?
- Eu te amo. Desculpa qualquer coisa. E obrigado por tudo.
- Isso. Muito bem. Mais.
- Eu te amo, dá licença?
- Vai, você consegue, capricha!
- Eu te amo, desculpa tá, me dá licença, está servida? Eu te amo, fique à vontade, está gostando, precisa de alguma coisa?
- Talvez.
- Mas eu não te amo por favor nem obrigado.
- Eu te amo contudo e todavia, mas eu não te amo embora nem apesar.
- ...
- Brevíssimo?
- Encantado...



A.C.A.M. e K.K.A.

sábado, 11 de julho de 2009

Resposta

Solta a minha mão, já que não tens juras. Já vai tarde, foi demais, mas vá embora. Estás aí com o atraso das folhas e eu já tenho a minha roupa amarelando no varal. Pois as folhas já caíram e é melhor morrer o corpo do que deixar passar o tempo da alma. Aliás, nem sempre é tempo de caqui, não é mais tempo. Não vamos poder chupar com gosto vermelho as nossas queixas. Está na época da poda, meu amor. E é preciso cortar os galhos velhos que farão sombra nos novos.



Ana Claudia Abrantes

trilha

o caminho cessa rio nes cio cicio cilada. um rio nes se cená rio, nes se silên cio entre árvores, é oásis nes ces sá rio.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Meio amor

Era uma substituta e, como toda substituta, começava mal-amada. Eu também sou uma substituta, eu sei. Porque sei, tentei ser amável, mas além de ser substituta sou humana das piores e acabei fazendo o que todos fazem: amei menos a substituta. A substituta percebeu meu meio amor, mas, precisando ser aceita, acedeu, como é da natureza da substituição.
Os substitutos, se não avisados por alguém ou por intuição, vão desprotegidos ao encontro do mal querer implícito. O substituto desavisado já começa querente, querendo ser amado sem condição ainda para tal. A condição é somente alheia, o substituto não dá as cartas: planta nova em jardim pomposo fica na sombra; recém-chegado no banco da frente pára no primeiro sinal; passageiro novo em ônibus lotado via Madureira-Bananal às oito horas, vai encontrar lugar? Há! O substituto ardoroso é ingênuo feito saia godê na ventania; sabe que não vai dar, mas insiste e sempre paga calcinha.
Já eu sou uma substituta orgulhosa irremediável. Faço questão de ser amada não. Sou só ensaio porque vivo sem patrocínio. E se ninguém paga pra ver, não sabe o que está perdendo. Porque o substituto orgulhoso pensa que pode cativar na passarela, só que ele não sai e dá-se o desperdício igual ao de pessoa genial em universo limitado. O substituto não tem chance. Mas tem sempre quem o queira como estepe da emoção, como segundo marcador de livros, como livro fácil pra descansar de Joyce ou da G.H. É útil.
O substituto não entra no portarretrato. Aliás, retrato não é coisa pra substituto, no máximo um digitalizado facilmente apagável, nada de impressão em papel. Substituto não vai pra estante. Substitutos só vão até a cama e o canto do quarto.
Sabe-se de histórias de substitutos que surpreendem, mas geralmente quando o titular era meio displicente. Quando no fundo no fundo ele não era tão bom assim. Então o substituto, inteligente, usa a ação e a sabedoria: faz e espera. Um titular forjado sempre é desmascarado e sua magnanimidade não cabe mais num copo. Se alguém me substituir ninguém vai chorar. E olha que eu até posso transbordar.
Mas se o titular é um mito, meu caro. Mitos são mais aderentes que fantasmas. Porque os meus fantasmas não passam por portas trancadas, tudo tem limite. Já o mito é a segunda pele das paredes, é a fada dupla presa em estrelas pequenas. Contra mitos não há argumentos e o substituto repete o C.A. porque não sabe rabiscar direito. É, afinal, o C.A. dos gênios, mas eu.
Bem, a substituta... No dia em que a substituta chegou a minha casa, ela se comportou sem pretensão, bem no lugar dela, como cabe às substitutas. E por isso pacientemente eu lhe ensinei a colocar os garfos e facas na posição que eu queria sempre e sempre insistia em dizer à outra; ensinei a pôr mais "comfort" no molho das roupas, como eu não tinha tempo de lembrar à outra; ensinei a colocar menos cominho na comida, como há muito eu pretendia dizer à outra. E a outra, sua parente, dizem que está até com ciúmes. Sem razão. Porque essa outra já havia pensado em se matar, e ter pensado em se matar pelo menos uma vez na vida é condição essencial pra ser alguém pra se gostar. É que, quando se quer muito, a vida é pouca.
Minha nova substituta não tem coisa vívida. Desde que seja vida já está bom. Ela não me toca nem gosta de música. Ela não tem vontade pulando dentro dela. Ela mistura pano de prato com pano de chão porque misturaria cigarro com sonhos. Ela não precisa de portarretrato, ela não pede nada. Parece só feita de dentes parcos, marido e filhos, muitos filhos. Ela precisa de leite, não de água. Minha substituta precisa do meu compromisso social, não do meu amor e isso me mata... Vou comprar uma pomada para as manchas do seu rosto porque eu gosto de arte e do que é belo e ninguém merece ver flores pisadas dentro de casa.

P.S.
No dia em que eu me cansar de ser uma substituta, plantarei um pomar só para mim. Lá eu terei maracujás e onze horas, e plantarei de novo manga-espada. No muro alto eu me colocarei, impressa, e ficarei ali aderida. Para que nunca ninguém venha me substituir no papel de hera.


Ana Claudia Abrantes