quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

o tempo de uma prece

o sorriso mais bonito e seu brilho podem durar apenas dois segundos, mas os franceses dariam beijos sob a Torre, pois é muito mais romântico que no alto dela.
considerando-se que não se pode ver a vida panoramicamente sempre, às vezes é preciso fazer escolhas no vazio:
entre a mentira e a família, entre o amor e a verdade, entre a necrose e o linfonodo acometido,
tudo vinga ou se vinga em uma vela acesa
cuja resina também evapora ao final da novena
e fica só o pires.
um cão carinhoso que dura menos que o dono,
o dia,
o percurso molhado de uma lesma,
o prazo de validade das dores e das seringas,
as enxaquecas que são filhas do medo,
os enjoos matinais que são filhos dos filhos
nós os fazemos de pé, encostados nos troncos.
assim que nascem, cagam-lhe os pardais, como se fossem árvore,
mas são esperanças e contraem delírio, sem cura: escrevem versos, fazem febre, balançam as orelhas e arregalam os olhos com frequência.

o sol é morno, mas
o vento é leve, mas
a vista daqui é linda, mas
a minha vontade não fazia
prece alguma.




Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

trilhos

quando o bonde passa
a louça estremece
a porta, o espelho, a janela até hoje estremece quando o bonde passa.

sal grosso queimando estala
ovo
galinha
os vidros da cozinha
frisada, a luz do sol na persiana vibra.

o lustre, a bancada de perfumes do banheiro,
o quadro na parede,
o móbile de pássaro treme,
freme a música tocando - interferência e queda.

de novo passa o bonde e o assoalho oscila
a rosca da torneira a pia pinga,
a cândida infecciona, o dente dá pontadas.
o sino pendurado,
a lâmpada tilinta,
o teto, o caritó, o peito eu trinco a arcada
quando o bonde passa.

quando o bonde passa,
a louça estremece, a porta, o espelho, a janela, a tarde, o meu coração até hoje estremece quando o bonde passa.



Ana Claudia Abrantes