sábado, 26 de junho de 2010

a margarida torta



era uma pétala adicional,
alguns diriam um defeito,
como um sexto dedo:
a margarida torta.
ninguém notava porque,
embora enraizada,
mancava com graça
quando ventava.


Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 24 de junho de 2010

olhos vazados

Um exército de escorpiões alveja uma presa
as caudas já lhe atacam as entranhas,
mas não chegaram aos olhos.
Os olhos não sabem ainda o quanto arde,
o quanto estarão banhados
e que o coração paralisa.
Não sabiam os olhos que não há antídoto
contra o passo dado em direção àquela toca.
Nenhuma outra cidade te abrigará,
nenhum colo,
quando sobrarem tão somente os seus olhos cegos,
esgotados, colaterados.
Do veneno que quiseste assim voluntariamente
restarão apenas
eternos movimentos frenéticos, histéricos, involuntários.


Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 8 de junho de 2010

Sem nome (Água corrente)

Sempre comi voraz o que me pesa em pesadelo e o que me refrigera nas pausas.
Respiro para que tudo se evole e respiro de volta tudo o de que sou feita:
gergelim e aço, salpicada e firme.
Não sinto pena do meu signo nem me arrependo dos arrependimentos que tenho.
Porque há em mim dois seios em que amamento até meus inimigos.

Mastigo a memória do que quase me mata todos os dias e essa pulsação é que me amplia
para além de minhas margens,
e então, meu núcleo e minha periferia gozam junto comigo
e é bom.
Lembro dos meus amores e sinto a boca amarga, um vazio no esterno.
Lembro de Adão, de Ângelo, de Hilário
e me amasio com cada corpo passado, cada vulto de sorriso entrecortado,
cada mania, cada falta.
Brinco com seus cheiros esquecidos e pingo limão no café
para testar o paladar e assim
tentar nomear o que já naquela época não tinha nome.

Agora tomo a vida pelas minhas rédeas para poder trotar em Pedro, em Gabriel, e em Leonardo não, porque é o único inocente.
E cada um deles, um rio diferente, mas, hipópótamos, lá moram,
também um pouco sagitários.
Estão todos hoje dentro de mim ainda e talvez sempre, mulher 350, como Mário:
sou eu e Joaquim, eu e Fátima, eu e Teresa, eu e Lívio - os meus homens.
E aqui, conjunto de amores, lembranças, flores e florestas,
eu coleciono dores que não doem mais, tenho saudade de promessas que já não têm eco,
soletro nomes apagados com água.
Água - este solvente de tantas matérias,
esta prova de amor dos meus amores.


Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 7 de junho de 2010

túmulo




o homem só consegue
dormir em decúbito.


Ana Cl.
(Foto de Agatha Franco, retirada no Cemitério São João Batista, enquanto um trabalhador dormia)

rosas da sombra (giovannas)

são um tipo especial de rosa
que só abre, por aqui, à meia-noite,
cujo cheiro discretíssimo atrai apenas
os olfatos mais sensíveis.


rodam por essas paragens
notívagos de impressões sofisticadas -
únicos que poderiam percebê-las.
como o álcool e o sono nebulizam as imagens
e os sentidos,
os notívagos não veem.
no entanto,
altas horas quando caem tontos,
sua cabeça encosta nelas.


de manhã eles acordam lentos,
um pouco mais sutis, alternados
e vivem todos os dias
com um fino odor, uma ideia distante,
com uma lembrança estranha dos canteiros.


Ana Claudia Abrantes

espinho



a ponta do dedo
é natural.
não escorre seiva, mas,
veja, o sangue
é tão vegetal quanto.


Ana Claudia Abrantes

quatro tempos

I

grade
dia lindo lá fora,
mas estranho
não conseguirmos sair.


II

para não morrer
para não virar as costas
para não perder
a validade da alma
é que estendemos a mão
em carne viva.


III

eclipse.
útero inútil.
brilhar para sempre
atrás,
por sob,
até
que suba
o pano, a cortina,
a terra, a vida inteira.


IV

entrada
não pise aí, não
porque as pegadas
vão manchar
o inferno.


Ana Claudia Abrantes