sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Surpresa é...


Deliciosamente anacrônica: a professora ganhou flores em tempos de pura distopia.


(Retroativo a 19 de fevereiro de 2009)


Espelho escrito

Enquanto escrevo, espelho, e um espelho vai se desenhando à minha frente. Primeiro e sempre os olhos, com o seu desfoco úmido, sua quase interrogação de sobrancelhas. Alinham-se meias-verdades na curva dos cílios, e o tempo acumulado no canto dos sorrisos. Depois um nariz abafado, arfando por alívios vasoconstritores e odores frescos, no desespero de respirar de vida, ou de vício. Na superfície do papel, ora laminado, pouco a pouco vão ponteando os poros, cada dia mais abertos e alertas a toda oxigenação. Que aerada venha a vida contra a pele! Agora, no vidro, os lábios pálidos e finos palavream indelicadezas para se ouvir do espelho vivo, e a moldura cresce junto aos cabelos, enferrujados. Escrito isto, pronto o espelho está e o espelho é tudo, mas o que mostra é nada. Ao contrário embaça, se, de perto, o ar que se respira é quente e a superfície, fria ... ou refratária.
26/02/2009
Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

minimalista

quanto menor, melhor eu vejo, pois no silêncio é que entendo segredos e o estender de sentidos a palavras rápidas. nas reticências entendo grátis o mícrico gesto diacrítico. Queres o melhor poema e eu te quero mínimo.


Ana Claudia Abrantes (para Fabrício)

Delicadeza

Com uma delicadeza de penumbra em tarde quente, folhas batendo palmas ao vento. Com uma delicadeza de água de moringa, com a ponta dos dedos, tateando a boca e o verbo. Com a delicadeza de sempre e a promessa de nunca, ele me atropelou de repente.
E escorri feito cascata de que se desvia o curso, sem querer.
E o pior é que eu estava na calçada.


Ana Claudia Abrantes

tempo esgotado

Não no amor, não no ódio, não no tédio, não tão lento nem tão rápido, nem que o vento traga árvores para a sala, nem que o tempo se esgote eu vou escrever um poema agora.


Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

autoimagem (?)

séria eu pareço um macaco, rindo eu pareço coelho. subindo eu trepo que nem gente grande, cozinhando eu dou aula como ninguém. estacionando sou demais sambando e me orientando sou melhor perdendo. cem metros rasos sou melhor poeta, no nado peito sou mais peito aberto. mas, na sequência, choro feito bicho, catando cacos e comendo moscas, se em lealdade feito a de um cachorro, amando eu morro.


Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

certeza

o gênio da roda perguntou à princesa se ela queria um rei ou o mundo. a princesa respondeu: o mundo! e então virou rainha.


Sem data
Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A vala que corre pela minha aldeia


Oswaldo Cruz é uma “cidadezinha qualquer”. Ali se fica. Mas, quando se desce na estação de trem, inadvertidamente com o tempo nos olhos, o valão é o Tejo.

10/02/2009

Ana Claudia Abrantes


Minha casa de Oswaldo Cruz


Sobre orgulho e rejeição, sobre amor e ranço, gosto e afastamento. Sobre o contraditório carinho à Itabira de Drummond, seu contraditório (des)apego à cidade e sobre a sensação, que às vezes tenho (como o autor), de não estar aqui onde vivo, mas lá. A sensação do estrangeiro na cidade, mas o desgosto do nativo pela vila. É assim que sinto.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei os sacos plásticos molhados e imediatamente grudados à parede “para secar”; herdei o sacolé de manga com leite, queimando frio a ponta dos dedos; herdei refresco de leite de coco com açúcar e muito gelo. Herdei não gostar de “pamonha, fresquinha, pamonha!”, herdei suco de caju, suco de caju, suco de caju de garrafa e a troca por pintinhos amarelos. Pipoca doce de panela, banana picadinha no feijão, arroz e ovo, macarrão com feijão, feijão com abóbora e azeite, ensopado de batata com calabresa. Farofa, sempre farofa.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei a inveja do carrinho de rolimã dos meus irmãos, herdei ver briga de pipa, briga por pipa, briga de cachorro. Herdei pular corda “um homem bateu em minha porta...”, pular elástico, brincar de pique na rua com o gesso no pé, ser a última no pique-esconde do Carlinhos porque ele sabia mentir. Correr de bate-bolas e chorar se me pegassem, vestir um bate-bola no alto verão e adorar!

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei as coisas da casa completamente fora do lugar das coisas da casa, e herdei coisas da casa que eu nunca imaginava, coisas da casa que nunca faltavam, como uma caixa inteira de “liquid paper” fora da validade, comprada no Mercadão. Herdei nunca faltar material escolar, nem a nossa própria bomba de pneu de bicicleta, sempre alienada por um amigo dos amigos.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei porta de banheiro que dá sempre para a cozinha, varandinha que se transforma em quarto, quarto que vira sala, corredor que vira banheiro, cachorros que viram gente.

Herdei festa junina de rua e disputa por vender o correio do amor. Herdei pedir dinheiro para as obras da igreja no sinal, montar barraquinha e vender caipi-fruta, herdei dançar quadrilha com o vestido mais bonito, depois cair no conto da caipira pra sempre. Herdei pertencer a todos os que a mim pertenciam, rir a noite inteira com os amigos por não ter dinheiro para sair. E herdei interpretar as peças mais engraçadas dos meus dezesseis ou dezoito anos.

De Oswaldo Cruz, herdei saber que o que não é meu não é meu, mesmo que eu não tenha nada e os outros, muito. Herdei saber também que é melhor que tudo o que toco seja meu, mas que nem tudo que defino é fato. Herdei condescendência e todo o martírio que dela pode advir, herdei a vontade de sumir, o medo de me expressar, a covardia e as pequeninas coragens.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolhi bem ou mal, herdei a vontade de sair, a vontade de voltar sempre, o receio e o silêncio de voltar pra sempre. Herdei não saber o que fazer com as mãos e com os dias, a não ser escrever.

De Oswaldo Cruz e tudo o que nele escolhi, herdei ser a única menina, e a solidão. Herdei o silêncio. Herdei a vontade de ler livros, mas se acabarem os livros. Herdei ver tanta gente na esquina à toa, e o tempo passar sem o espaço. E o tempo passar sem que algo mudasse. Então herdei ser pedra e também não mudar, criar limo. Herdei até a pedra rolar.

E daí trago a lembrança de Fernando Pessoa: aquele rio que corre pela sua aldeia e que não é o Tejo, mas é mais belo que o Tejo, porque o Tejo não está ali na aldeia. Mas o valão, ao lado do “Buraco do Galo”, margeado pelas barraquinhas de cerveja e comida; o valão, aclimatado pelo batuque intermitente, o valão também não é, não pode ser o rio de uma aldeia. O valão é menos que “gente humilde”, é tão jeca tatu, tão churrasco, tão pronome neutro. O valão é o balcão da loja com a cerveja do fim-de-semana, é o salto alto e os vestidos colantes com decotes profundos; o valão é o Faustão, é o Big Brother Brasil, é o não-alfabético, é o pagode. Por outro lado é o samba que herdei dos pés da Cláudia e já levei para a Lapa, pra Tijuca, pra Santa Teresa e levarei sempre a todos os lugares do mundo, inclusive aqui dentro...

De Oswaldo Cruz e tudo o que me define, herdei aprender a orar e a apreciar. Não exatamente um Homem, mas as pessoas. E talvez não exatamente as pessoas, mas a vida. Não sei bem, mas hoje parece ter sido um dia bom, depois de atravessar o valão.

Ana Claudia Abrantes

10/02/2009

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Egoísta

Educar é pedra na pedra

e pedra na pedra sai faísca...

Educar é isca perdida e perdida,

engordando peixes.

Uma hora, uma cocoroca gorda morde,

e então todas as outras iscas valeram a pena.

Educar dá briga

de não querer sair.

Educar é egoísta amor pela vida, não exatamente pelo outro.

Ana Claudia Abrantes