terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A vala que corre pela minha aldeia


Oswaldo Cruz é uma “cidadezinha qualquer”. Ali se fica. Mas, quando se desce na estação de trem, inadvertidamente com o tempo nos olhos, o valão é o Tejo.

10/02/2009

Ana Claudia Abrantes


Minha casa de Oswaldo Cruz


Sobre orgulho e rejeição, sobre amor e ranço, gosto e afastamento. Sobre o contraditório carinho à Itabira de Drummond, seu contraditório (des)apego à cidade e sobre a sensação, que às vezes tenho (como o autor), de não estar aqui onde vivo, mas lá. A sensação do estrangeiro na cidade, mas o desgosto do nativo pela vila. É assim que sinto.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei os sacos plásticos molhados e imediatamente grudados à parede “para secar”; herdei o sacolé de manga com leite, queimando frio a ponta dos dedos; herdei refresco de leite de coco com açúcar e muito gelo. Herdei não gostar de “pamonha, fresquinha, pamonha!”, herdei suco de caju, suco de caju, suco de caju de garrafa e a troca por pintinhos amarelos. Pipoca doce de panela, banana picadinha no feijão, arroz e ovo, macarrão com feijão, feijão com abóbora e azeite, ensopado de batata com calabresa. Farofa, sempre farofa.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei a inveja do carrinho de rolimã dos meus irmãos, herdei ver briga de pipa, briga por pipa, briga de cachorro. Herdei pular corda “um homem bateu em minha porta...”, pular elástico, brincar de pique na rua com o gesso no pé, ser a última no pique-esconde do Carlinhos porque ele sabia mentir. Correr de bate-bolas e chorar se me pegassem, vestir um bate-bola no alto verão e adorar!

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei as coisas da casa completamente fora do lugar das coisas da casa, e herdei coisas da casa que eu nunca imaginava, coisas da casa que nunca faltavam, como uma caixa inteira de “liquid paper” fora da validade, comprada no Mercadão. Herdei nunca faltar material escolar, nem a nossa própria bomba de pneu de bicicleta, sempre alienada por um amigo dos amigos.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolho como símbolo, herdei porta de banheiro que dá sempre para a cozinha, varandinha que se transforma em quarto, quarto que vira sala, corredor que vira banheiro, cachorros que viram gente.

Herdei festa junina de rua e disputa por vender o correio do amor. Herdei pedir dinheiro para as obras da igreja no sinal, montar barraquinha e vender caipi-fruta, herdei dançar quadrilha com o vestido mais bonito, depois cair no conto da caipira pra sempre. Herdei pertencer a todos os que a mim pertenciam, rir a noite inteira com os amigos por não ter dinheiro para sair. E herdei interpretar as peças mais engraçadas dos meus dezesseis ou dezoito anos.

De Oswaldo Cruz, herdei saber que o que não é meu não é meu, mesmo que eu não tenha nada e os outros, muito. Herdei saber também que é melhor que tudo o que toco seja meu, mas que nem tudo que defino é fato. Herdei condescendência e todo o martírio que dela pode advir, herdei a vontade de sumir, o medo de me expressar, a covardia e as pequeninas coragens.

De Oswaldo Cruz e tudo que nele escolhi bem ou mal, herdei a vontade de sair, a vontade de voltar sempre, o receio e o silêncio de voltar pra sempre. Herdei não saber o que fazer com as mãos e com os dias, a não ser escrever.

De Oswaldo Cruz e tudo o que nele escolhi, herdei ser a única menina, e a solidão. Herdei o silêncio. Herdei a vontade de ler livros, mas se acabarem os livros. Herdei ver tanta gente na esquina à toa, e o tempo passar sem o espaço. E o tempo passar sem que algo mudasse. Então herdei ser pedra e também não mudar, criar limo. Herdei até a pedra rolar.

E daí trago a lembrança de Fernando Pessoa: aquele rio que corre pela sua aldeia e que não é o Tejo, mas é mais belo que o Tejo, porque o Tejo não está ali na aldeia. Mas o valão, ao lado do “Buraco do Galo”, margeado pelas barraquinhas de cerveja e comida; o valão, aclimatado pelo batuque intermitente, o valão também não é, não pode ser o rio de uma aldeia. O valão é menos que “gente humilde”, é tão jeca tatu, tão churrasco, tão pronome neutro. O valão é o balcão da loja com a cerveja do fim-de-semana, é o salto alto e os vestidos colantes com decotes profundos; o valão é o Faustão, é o Big Brother Brasil, é o não-alfabético, é o pagode. Por outro lado é o samba que herdei dos pés da Cláudia e já levei para a Lapa, pra Tijuca, pra Santa Teresa e levarei sempre a todos os lugares do mundo, inclusive aqui dentro...

De Oswaldo Cruz e tudo o que me define, herdei aprender a orar e a apreciar. Não exatamente um Homem, mas as pessoas. E talvez não exatamente as pessoas, mas a vida. Não sei bem, mas hoje parece ter sido um dia bom, depois de atravessar o valão.

Ana Claudia Abrantes

10/02/2009

7 comentários:

:.tossan® disse...

Te orgulhas de Oswaldo Cruz como eu de minha cidade. Como é bom que seja assim. Belo texto!
Um dia este mesmo palhaço vai sorrir. O mesmo pintor vai faze-lo. Bj

Nilson Barcelli disse...

Este seu texto é fabuloso cara amiga.
Herdou muitas coisas lindas.
Mas a sua excelente capacidade para a escrita herdou do seu suor...
Depois de ler o seu texto até fiquei com vontade de visitar o local que tanto a influenciou...

Com uma visão idêntica, mas com olhos mais pessoanos que claudianos... escrevi em tempos:

"Do morro do Corcovado
avistam-se lindas paisagens
e uma grandiosa enseada,
ainda cheia de glórias lusitanas
na memória das caravelas
outrora lá fundeadas.

Mas, quando olho
para o morro do Corcovado,
eu vejo apenas o monte
da minha terra ditosa,
porque são as mimosas
que descubro na Primavera
ancorada no teu rosto
que o ofuscam, douradas.

Qualquer pessoa sente
o mesmo que eu
quando está no Corcovado,
mas quase minguem vê
as memórias que eu avisto
no teu bailado de musa
quando sobrevoas, comigo,
o monte da minha terra.

Quando, já corcovado, olho para ti,
ninguém tem mais vida
nem é mais bela que tu.
Porque, mesmo longe do monte
da minha terra e dos meus beijos,
estás na minha terra e assim eu não morro."

Espero que tenha gostado de o ler.


Bom fim de semana.
Beijo.

Ana Claudia disse...

"Tossan", palhaço triste das belas fotos, que pintor é esse que não te põe uma notinha de alegria?

O sentimento que tenho por Oswaldo Cruz é ambíguo, como eu explico: orgulho e afastamento,"mas certamente é amor". Torto ou nostálgico.

Ana Claudia disse...

Nilson, eu já conhecia teu poema do Corcovado e sei que lá escrevi porque eu me identifiquei na ocasião. Inevitável. Acho que porque ainda reconheço minha aldeia em mim é que "eu não morro". Obrigada.
Oswaldo Cruz, hoje, é mais memória, é mais história do que fato em minha vida. Mas eu sempre penso nessas coisas quando vou até lá. Inevitável também.
Beijinho

Anônimo disse...

...onde estiveste todo esse tempo, Anacrônica? Pelo teu nome parece que estiveste fora, fora do tempo, fora de qualquer tempo que eu me lembre - nunca antes te ouvir falar, como pode, como pude? Ainda bem que existiu o instante de te encontrar, de te ler, de amar o amor que derramaste nestas linhas sempre poucas, que sede de te ler mais, muito mais. Absolutamente encantado. Espantado. Fascinado. E tudo mais de ado que existe: atordoado, embasbacado, alucinado. Ado. Beijos no teu coração.

Ana Claudia disse...

Fabrício,
Poxa...
Que bonito...

Eu estava por aí, sem escrever por compulsão, sem escrever de emergência, sem escrever por cálculo, simplesmente sem escrever porque... porque eu entendia que escrever era sofrer. Até que conheci um amigo querido, o Jacques, que tanto me falou pra eu escrever de novo. E de todas as coisas tão boas que dele ouvi, entendi que "tudo vale a pena se ao menos vira poema", mesmo que esse poema não seja assim tão bom. E, desde então recomecei.
Quem me lê costuma dizer que não entende nada, outros não entendem muito, há os que entendem tudo... Mas, independente das opiniões, agora não tem mais jeito. Mesmo que eu não frequente mais meu próprio blogue, mesmo que ninguém me veja (é legal ser visto, mas não é uma condição pra mim, entende), a palavra já me tatuou.

Ana Claudia disse...

E mais para o Fabrício:
Você tem uma força nas emoções, poeta. Inevitável isso passar para os seus textos também.
Obrigada pela troca, obrigada. Mesmo que não seja imprescindível, é realmente muito , muito bom sair um pouco do solilóquio poético.