Escuto você chorando, mas você não está chorando. Vejo o brilho da festa, de muito longe. Os bombeiros passam.
Carrego, a partir das nove ou das dez
o peito aberto e a janela de vidro, fechada; lá fora é fresco demais.
Na minha noite sem sono e sem sexo, cruza o voo de um pássaro pela janela; um pombo, um morcego talvez.
São três, são quatro, são cinco; o voo é curvo, a noite é cinza, a alma pesa.
Não cai o pássaro com o peso da alma, não cai o sono.
Escuto você chorando, mas você não está chorando. Escuto você chorando, mas você não está chorando. Escuto você chorando, mas não.
Este à janela sou eu.
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Amores surdos
Eu me porei na posição clássica.
Membros inferiores formando o menor polígono possível:
de bruços, uma das pernas levemente flexionada, a outra estendida,
o rosto inteiro quase enterrado no travesseiro,
os braços esticados para trás:
um ao longo do corpo, o outro com os dedos espalhados nas nádegas;
separá-las.
Eu não te darei o meu sorriso mais cândido
nem te direi as palavras mais sujas.
Apenas te falarei em húngaro
ou qualquer língua não latina:
"És a primeira e a última vez."
(Por aqui eu morreria de quatro
em várias línguas
melodiosas),
Por isso meu gemido será surdo
e te entronizo no universo dos meus punhos se abrindo em facas;
sou um bode cabeceando a porta.
Ana Claudia Abrantes
Membros inferiores formando o menor polígono possível:
de bruços, uma das pernas levemente flexionada, a outra estendida,
o rosto inteiro quase enterrado no travesseiro,
os braços esticados para trás:
um ao longo do corpo, o outro com os dedos espalhados nas nádegas;
separá-las.
Eu não te darei o meu sorriso mais cândido
nem te direi as palavras mais sujas.
Apenas te falarei em húngaro
ou qualquer língua não latina:
"És a primeira e a última vez."
(Por aqui eu morreria de quatro
em várias línguas
melodiosas),
Por isso meu gemido será surdo
e te entronizo no universo dos meus punhos se abrindo em facas;
sou um bode cabeceando a porta.
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Carta de amor e saudade
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Poeira e mofo espreitam
tuas fotografias,
embora elas te lembrem ainda por três décadas
contra milênios de esquecimento
onde todos nos encontraremos.
A coriza me escorre, a pálpebra anda pulsando e os olhos,
fechados ou abertos,
continuam no escuro.
Tomo café no corpo de geleia pra te sentir mais perto
e uso tuas roupas velhas pra te manter comigo por mais cinco anos,
tudo é tão provisório.
Aquela calça de estimação rasgada no gancho que me costuraste, a batedeira manual que juraste haver-me dado, tuas cartas de amor e ódio que eu tão sofregamente li quanto rasguei. (Até hoje não sei se isso foi um crime e contra quem.)
Tua máquina de costura costura sozinha diariamente às 6:18h aqui, ao passo que tu já não costuravas há tanto,
e ontem, entre a insônia e o sono, tu me sorriste depois de tanto tempo, obrigada, obrigada, eu te amo...
Tudo foi sendo doado. Tuas tintas, teus artesanatos, teus tecidos. O móvel redondo - na verdade um porta-penico - que eu vaticinava como minha herança (Tu exigiste que eu levasse antes), ele enfeita agora a minha sala, junto com o relógio de parede dos teus avós.
Na minha lembrança ficam
o porão do meu avô,
onde fui feliz numa tarde de aventura com a Carla,
as notas de dinheiro velho do meu avô, escondidas nos desgastes do emboço e roídas pelos ratos - histórias que tu contavas.
Por te querer demais, para estender teus dias,
ajudei a queimar, inadvertidamente, as cordas que te prendiam, as chances do teu estômago,
e tu intuías. Perdão, perdoa.
Hoje, quando sinto náusea, quando me vêm enjoos de mar, de terra ou de azia, eu me sinto atada a ti e penso
que tudo é mais fácil quando se pode respirar sem esforço, e quando o vômito realmente alivia.
Não há lugar no mundo a que eu menos queira voltar do que a tua cama. Não aquela onde dormias nos tempos melhores, mas aquela onde te mantiveste deitada, imperfeitamente, com os flancos alternados sem posição nem tempo. E com as mãos estendidas num abandono de flor que caiu.
E eu tive de te ver assim -
incrível mãe, mãe gigante -
lentamente desmistificada:
pobre / mãe
então / caminhando
tão / devagar.
E enfim minhas mãos foram ficando só para teus carinhos
e diziam adeuzinhos, copiando o teu modo, como se dizem a bebês.
Minha pele se tornando leve, tenra, pra tentar absorver num abraço
a involuntária aspereza da tua,
mas nada existe sem umectância neste mundo,
mãe.
Até o amor vai se abstraindo.
E, amortizando o amor, a morte
faz a eternidade etérea e seca.
Mas sou plásmática, é um defeito, e ainda amo
a memória de tuas mãos.
Eu queria brincar de passa-anel contigo e meu filho
e o meu gosto mais íntimo seria
espalmadas, as tuas mãos,
as tuas mãos em oração
/ obrigatória
/ porque involuntária
/ inevitável
/ e pia
as tuas mãos de fada bruta, de borboleta, tuas mãos de asa / em aconchego calmo, acalentando dois passarinhos, nascidos, irrequietos, incautos,
as tuas mãos nas minhas, mãe.
Ana Claudia Abrantes
sábado, 10 de agosto de 2013
manta
O pequeno lactente dormita...
O ar é mais fresco, mas ele sua.
A mãe que o aquece mais do que devia
está nua.
Ana Claudia Abrantes
O ar é mais fresco, mas ele sua.
A mãe que o aquece mais do que devia
está nua.
Ana Claudia Abrantes
domingo, 4 de agosto de 2013
O segundo pensamento de Júlio
Um pensamento de Júlio vem
antes de tê-la,
quando enxerga suas clavículas e pontas ressaltadas
dos ombros, dos joelhos, da extremidade dos punhos;
quando cheira sua pele e as sobrancelhas.
Outro pensamento vem a Júlio
quando dentro dela
e outro ainda, quando fora, num abraço.
Um pensamento é pássaro
sentindo nos olhos o vento
da corrida sobre as gramas, sobre a variedade de folhas de árvore, sobre as rochas enfeitando a cidade, a calçada de pedras portuguesas.
Recebe o calor que ainda vem do asfalto e desvia dos fios de alta tensão.
Para resumir, o terceiro pensamento e nunca último, apartado e junto, voaria
para distante.
Mas o segundo pensamento de Júlio,
de quando está dentro dela,
se aninha.
Dormita sempre
e sempre à espera.
A boca aberta aguardando o grão,
o ninho disposto esperando a folha, o pequeno pedaço de caule,
tenro talvez,
sem pensar na vertigem (entre o ar e a luz
filtrada pelos galhos)
que a seis metros o separa do chão.
Ana Claudia Abrantes
antes de tê-la,
quando enxerga suas clavículas e pontas ressaltadas
dos ombros, dos joelhos, da extremidade dos punhos;
quando cheira sua pele e as sobrancelhas.
Outro pensamento vem a Júlio
quando dentro dela
e outro ainda, quando fora, num abraço.
Um pensamento é pássaro
sentindo nos olhos o vento
da corrida sobre as gramas, sobre a variedade de folhas de árvore, sobre as rochas enfeitando a cidade, a calçada de pedras portuguesas.
Recebe o calor que ainda vem do asfalto e desvia dos fios de alta tensão.
Para resumir, o terceiro pensamento e nunca último, apartado e junto, voaria
para distante.
Mas o segundo pensamento de Júlio,
de quando está dentro dela,
se aninha.
Dormita sempre
e sempre à espera.
A boca aberta aguardando o grão,
o ninho disposto esperando a folha, o pequeno pedaço de caule,
tenro talvez,
sem pensar na vertigem (entre o ar e a luz
filtrada pelos galhos)
que a seis metros o separa do chão.
Ana Claudia Abrantes
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Ícaro
"afinal somos todos pedras sonhando asas." nydia bonetti
Quando Ícaro caiu,
o mar se abriu para fechar-se quebrantado,
o vento fez a breve pausa entre as nuvens
que se racharam em frestas.
A luz do sol em flechas lúcidas, douradas,
tingiu de listras amarelas e azuis
o fresco céu e os morros.
Quando Ícaro caiu,
a terra deu seu espetáculo aos bichos todos
e todos viram um objeto ainda animado
arremessado do alto.
Era um dia claro.
Eu vejo as penas se soltarem dos emplastros
de cera em grude, inteligência e fogo-morto,
e feito chuva em forma de papel picado
penugens viram fogos vítreos, delicados
para o brilhar do dia:
foi lindo.
Quando Ícaro caiu,
também mediu
o sonho intenso de alcançar o que era alado,
o sonho bobo de se alçar do chão ao topo:
Ícaro era novo...
Antes de Ícaro cair,
não havia
um só grito suspenso pelo fato,
um só gemido, uma lágrima, uma lástima.
Era só brisa em harmonia e um querer bem.
E sempre o sol tingindo e, morno, tenazmente,
cobrindo a grama, a praça, a igreja, a escola, o pátio,
reaquecendo a pele, os olhos e a cabeça.
Quando Ícaro caiu,
ele não sabia
que era a última vez.
Ana Claudia Abrantes
Quando Ícaro caiu,
o mar se abriu para fechar-se quebrantado,
o vento fez a breve pausa entre as nuvens
que se racharam em frestas.
A luz do sol em flechas lúcidas, douradas,
tingiu de listras amarelas e azuis
o fresco céu e os morros.
Quando Ícaro caiu,
a terra deu seu espetáculo aos bichos todos
e todos viram um objeto ainda animado
arremessado do alto.
Era um dia claro.
Eu vejo as penas se soltarem dos emplastros
de cera em grude, inteligência e fogo-morto,
e feito chuva em forma de papel picado
penugens viram fogos vítreos, delicados
para o brilhar do dia:
foi lindo.
Quando Ícaro caiu,
também mediu
o sonho intenso de alcançar o que era alado,
o sonho bobo de se alçar do chão ao topo:
Ícaro era novo...
Antes de Ícaro cair,
não havia
um só grito suspenso pelo fato,
um só gemido, uma lágrima, uma lástima.
Era só brisa em harmonia e um querer bem.
E sempre o sol tingindo e, morno, tenazmente,
cobrindo a grama, a praça, a igreja, a escola, o pátio,
reaquecendo a pele, os olhos e a cabeça.
Quando Ícaro caiu,
ele não sabia
que era a última vez.
Ana Claudia Abrantes
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Uma história para Hannah ou Memórias para Adriano
(Lembra-te do Teu criador nos dias de tua mocidade, antes que venham os maus dias e cheguem os anos dos quais venhas a dizer "Não tenho neles contentamento." - Eclesiastes, cap 12, vers 1)
Para você viver a miséria
e se esfregar no chão como eu me esfreguei.
Para você tentar todos os caminhos
e seguir achando que nada disso faz sentido.
Para você consumir pouco e querer muito,
para você continuar querendo, e arder;
para você queimar até as próprias cinzas
e então atravessar sub-clinicamente, diariamente,
por sobre elas pelo tempo que restar.
Para você perder as poucas fichas,
para você fazer coligações involuntariamente
e intencionalmente gerar rixas
e sofrer.
Para você se ver perdida, inevitável,
humildemente enredada,
para você enredar e imiscuir ideias fixas
onde só havia vislumbres
e palavras vagas.
E ferver também o seu estômago
ou o seu ânus em coceiras matinais,
e os distúrbios notívagos do sono,
para você enjoar um dia,
para você também querer morrer.
Para que tudo isso seja feito e consumado
é que te deixo
antes
a minha alegria,
os meus olhos ternos,
o meu colo.
Mas esta minha condição também:
este relicário de medos,
esta caixinha de música que nunca ganhei,
esta caixa de cartas de amigos e antigos namorados,
este caderno de estudos de minha mãe,
estas anotações de poemas não paridos,
este status de feita para o amor, e o amor não existe,
estes retratos do meu pai - primeiro homem que não me bateu.
E para que você possa me acordar um dia,
às 06:18 da manhã com vontade de brincar,
para que outro dia você chore e seja intolerável,
para que eu mereça os seus melhores sorrisos,
para que um dia você não me queira muito
até que não me queira quase;
para que me magoe,
para que eu me doe,
para que doa tanto
e tudo seja você mesmo assim
e sempre e sem arrependimento,
é que te faço e que te crio.
Para que você sorria e creia
em Deus, nos dias bons,
antes
que eu me vá e você me queira toda,
antes, que o peso também se abata
sobre as suas horas, e sobre os dias
de sua pouca idade
antes que cheguem os anos dos quais você venha a dizer
"não tenho neles contentamento".
Ana Claudia Abrantes
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