sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Carta de amor e saudade




Poeira e mofo espreitam
tuas fotografias,
embora elas te lembrem ainda por três décadas
contra milênios de esquecimento
onde todos nos encontraremos.

A coriza me escorre, a pálpebra anda pulsando e os olhos,
fechados ou abertos,
continuam no escuro.

Tomo café no corpo de geleia pra te sentir mais perto
e uso tuas roupas velhas pra te manter comigo por mais cinco anos,
tudo é tão provisório.

Aquela calça de estimação rasgada no gancho que me costuraste, a batedeira manual que juraste haver-me dado, tuas cartas de amor e ódio que eu tão sofregamente li quanto rasguei. (Até hoje não sei se isso foi um crime e contra quem.)

Tua máquina de costura costura sozinha diariamente às 6:18h aqui, ao passo que tu já não costuravas há tanto,
e ontem, entre a insônia e o sono, tu me sorriste depois de tanto tempo, obrigada, obrigada, eu te amo...


Tudo foi sendo doado. Tuas tintas, teus artesanatos, teus tecidos. O móvel redondo - na verdade um porta-penico - que eu vaticinava como minha herança (Tu exigiste que eu levasse antes), ele enfeita agora a minha sala, junto com o relógio de parede dos teus avós.
Na minha lembrança ficam
o porão do meu avô,
onde fui feliz numa tarde de aventura com a Carla,
as notas de dinheiro velho do meu avô, escondidas nos desgastes do emboço e roídas pelos ratos - histórias que tu contavas.


Por te querer demais, para estender teus dias,
ajudei a queimar, inadvertidamente, as cordas que te prendiam, as chances do teu estômago,
e tu intuías. Perdão, perdoa.

Hoje, quando sinto náusea, quando me vêm enjoos de mar, de terra ou de azia, eu me sinto atada a ti e penso
que tudo é mais fácil quando se pode respirar sem esforço, e quando o vômito realmente alivia.

Não há lugar no mundo a que eu menos queira voltar do que a tua cama. Não aquela onde dormias nos tempos melhores, mas aquela onde te mantiveste deitada, imperfeitamente, com os flancos alternados sem posição nem tempo. E com as mãos estendidas num abandono de flor que caiu.

E eu tive de te ver assim -
incrível mãe, mãe gigante -
lentamente desmistificada:
pobre / mãe
então / caminhando
tão / devagar.


E enfim minhas mãos foram ficando só para teus carinhos
e diziam adeuzinhos, copiando o teu modo, como se dizem a bebês.
Minha pele se tornando leve, tenra, pra tentar absorver num abraço
a involuntária aspereza da tua,
mas nada existe sem umectância neste mundo,
mãe.

Até o amor vai se abstraindo.
E, amortizando o amor, a morte
faz a eternidade etérea e seca.

Mas sou plásmática, é um defeito, e ainda amo
a memória de tuas mãos.
Eu queria brincar de passa-anel contigo e meu filho
e o meu gosto mais íntimo seria

espalmadas, as tuas mãos,
as tuas mãos em oração
/ obrigatória
/ porque involuntária
/ inevitável
/ e pia
as tuas mãos de fada bruta, de borboleta, tuas mãos de asa / em aconchego calmo, acalentando dois passarinhos, nascidos, irrequietos, incautos,
as tuas mãos nas minhas, mãe.


Ana Claudia Abrantes

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