terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

ao abrigo da luz

ao abrigo da luz, os perfumes caros
e os remédios.
contra os flashes, a proibição de máquinas e celulares.
ao abrigo, na penumbra devem estar as obras raras,
embora no escuro bibliotecas sejam pó.

lentamente as pessoas derretem
e se fossem de cera escorreriam
sob holofotes.

o tempo e a luz, uma lei da física
inevitável teus olhos cada vez mais distantes.

é a luz que ameniza humores melancólicos,
que deixa contritos os prováveis suicidas, e eles retrocedem.
a luz que as mãos dão aos filhos e que faz
crescerem as plantas,
a luz que evapora na praia,
que enternece uma manhã de sol, mas a luz do sol
derrete, e tudo é ícaro, todo voo cai.
dói ao continuar batendo no mesmo lugar,
diariamente.

também a pele das testemunhas fica
feito frinchas de falésias, amorenada.
o tempo e a pele, muros
de barro ou bronze, quebrados.
manchas, sardas, linhas, pequenas mágoas, todo dia.
as fotografias craquelam, memórias falhas.
mas se até as testemunhas envelhecem,
a solidão não é um privilégio.
nenhum abrigo.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

oito/oitenta - vida/morte

oito
já procurei a cama no ângulo certo / para aquecer a bunda no sol pela janela.

oitenta
também abro as pernas aos ventiladores / para refrescar o sol de fevereiro.

A seca é grande depois da tempestade, não a bonança.
Mas enquanto fizer sol pela manhã, a cirurgia não acaba,
nem a esperança.



Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

o tempo de uma prece

o sorriso mais bonito e seu brilho podem durar apenas dois segundos, mas os franceses dariam beijos sob a Torre, pois é muito mais romântico que no alto dela.
considerando-se que não se pode ver a vida panoramicamente sempre, às vezes é preciso fazer escolhas no vazio:
entre a mentira e a família, entre o amor e a verdade, entre a necrose e o linfonodo acometido,
tudo vinga ou se vinga em uma vela acesa
cuja resina também evapora ao final da novena
e fica só o pires.
um cão carinhoso que dura menos que o dono,
o dia,
o percurso molhado de uma lesma,
o prazo de validade das dores e das seringas,
as enxaquecas que são filhas do medo,
os enjoos matinais que são filhos dos filhos
nós os fazemos de pé, encostados nos troncos.
assim que nascem, cagam-lhe os pardais, como se fossem árvore,
mas são esperanças e contraem delírio, sem cura: escrevem versos, fazem febre, balançam as orelhas e arregalam os olhos com frequência.

o sol é morno, mas
o vento é leve, mas
a vista daqui é linda, mas
a minha vontade não fazia
prece alguma.




Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

trilhos

quando o bonde passa
a louça estremece
a porta, o espelho, a janela até hoje estremece quando o bonde passa.

sal grosso queimando estala
ovo
galinha
os vidros da cozinha
frisada, a luz do sol na persiana vibra.

o lustre, a bancada de perfumes do banheiro,
o quadro na parede,
o móbile de pássaro treme,
freme a música tocando - interferência e queda.

de novo passa o bonde e o assoalho oscila
a rosca da torneira a pia pinga,
a cândida infecciona, o dente dá pontadas.
o sino pendurado,
a lâmpada tilinta,
o teto, o caritó, o peito eu trinco a arcada
quando o bonde passa.

quando o bonde passa,
a louça estremece, a porta, o espelho, a janela, a tarde, o meu coração até hoje estremece quando o bonde passa.



Ana Claudia Abrantes

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Alícia

Há um vale atrás da balaustrada na curva do caminho,
mas quem chega só vê a superfície de flores.
O viajante sustenta os cotovelos e contempla
as cores que se estendem longamente,
mas não é um campo de flores.
Apóia os pés na reentrância da coluna para atravessar
e cai
sobre as hastes altas e flexíveis terminadas em botão,
no céu.

Um disfarce de flores para o abismo.




Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma casa

Chover lá fora não é o bastante.
Os canos aqui deveriam fissurar por dentro dos tijolos
e nada deveria ser intempestivo.
Toda rachadura levaria anos se desgastando
enquanto o emboço, cada vez mais úmido,
molhasse mal se encostasse a mão.

Uma solidão, leve, feito a brisa de duas asas
mina do fundo das paredes
e na superfície se faz o esperado vazio,
o frio almejado, quem sabe
até a frigidez, meu deus, como é preciso o frio.
estar só e feliz numa casa
simples, velha, completamente infiltrada.
Das narinas desenhar o caminho da expiração
tão mais quente que o ar.

Ir vazando, com um sopro mínimo
fricativo e sibilante
que de tão contínuo e filete não chega a pingar.
É o síngolo que chega,
único pêndulo ressoando a sinfonia inteira,
finalmente capaz e íntegro - um sino.
Mas toca estridente e melódico,
passional ou submisso aqui, no esterno,
como voz feminina tombada
por um exército de signos viris,
empunhando flores e espadas
sobre cavalos brancos.

Vagar pelos cômodos, conhecê-los.
Pela leveza etérea dos panos do vestido
que aderem aos portais e maçanetas orvalhadas, compreender
que a loucura dos homens não vê razão
na solidão.
Então rogar pela clausura desvairada!
Em paz!
Assim sonhar com uma parede azul claro
e carregar dentro de mim uma casa
fresca, úmida, suficiente e vazia -
uma casa.
Em qualquer casa que eu vá.



Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

acordados

forçar a língua para lamber à frente
é tanto inventar aspectos verbais impensados quanto conjugar flores do campo e orquídeas
num só arranjo.

criar e forçar.

sentir queimar a língua, alongando-a úmida, dói e arde.
elástica língua, como partes do corpo, berrando impropérios ou gemendo
acordos.
tensionar ao limite a distância espacial,
mas não romper a fibra.

solucionar o desfecho com a geografia de um de nós
aberta no sofá da sala.

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passada a chave, nós dois.





Ana Claudia Abrantes