quinta-feira, 22 de abril de 2010

A natimorta

Em toda a sua vida, só deu a luz a três natimortos, todos os outros ela abortou. Um dia escolheu morar vizinha ao cemitério da cidade litorânea. Uma madrugada por ano, ela se esgueirava pelas ruelas do campo santo na tentativa de não ser vista pelos vigilantes e depositava ao lado de qualquer mármore ainda úmido o seu fruto seco, inteiro ou pelas metades. Com doze fósforos formando quatro hastes em apressada cruz equilátera, ela acendia o pequeno peito ou o que fosse um braço, e o fogo era rápido. Um dia, foi descoberta. Investigaram-na, deram-na como louca, prenderam-na, ela fugiu. Mudou para ainda mais distante da orla, mas, mesmo assim, todo ano passaram a surgir os delicados destroços de uma luta orgânica, no mar. Os pescadores, pensando que os tristes achados eram de mau agouro, procuravam aterrorizados não tocar e deixavam que o mar engolisse de volta o que era dele. Nunca mais foi pega. Por isso adquiriu confiança em sua sina. Passou a oferecer seus restos inanimados em auroras anuais, quando a madrugada encontra a luz baça e a penumbra, e quando o céu tem a cor dos seus filhos. Mas, apesar da longa caminhada de volta no sol já alto, ela cumpria; os anos corriam e ela seguia, cada vez mais pálida.



Ana Claudia Abrantes
22 de abril de 2010

2 comentários:

Catarina Poeta disse...

Companheiro de blog, saiu meu 4° livro, e você pode fazer download em http://www.bookess.com/read/3082-releituras/
Forte abraço!

Ana Claudia disse...

Legal!