terça-feira, 17 de agosto de 2010

o vento e o tempo

agora é o vento
não o sopro.
é o vento espalhando as notícias
que não contamos.
as cartas que não remetemos,
os bilhetes reescritos rasgados,
as nossas palavras retrocedentes:
tudo é quase e ventania,
tudo solto.
todos os papéis picotados,
centrífugos, alados
que não rejuntamos.
tarde demais.
rodam em espiral no centro do pátio,
na tarde fria a farfalhar,
os pedaços de recado que amarelaram.
virou papiro a nossa última mensagem
e ressecou em pequenos cacos.
as anotações no canto da página 74
já não explicam mais
já não perguntam mais.
nem excitam curiosidade.

agora é o vento,
não o sopro.
é o vento que só não desfaz
o caminho da luz indireta
sobre as flores
que arrancamos,
pensando em nascerem outras.
mas é por pouco.

agora é o vento,
carregando o tempo
no topo
do redemoinho.
é o vento agora quebrando
a ampulheta,
soltando as maldições, os ciscos,
as horas e a areia
sobre nós.

é o vento, tiritando os dentes da gente,
enregelando os espaços vazios
entre os feitos e os não feitos,
entre o cachecol o pescoço a orelha e a cabeça
(importante não perder uma coisa nem outra)

impossível conciliar
o ar
quando ondas sopradas de todas as direções
e ambos os sentidos
arrebentam sobre a brisa fresca.
enchendo os olhos, arranhando
aderindo às narinas,
chocando o céu da nossa boca
com pedaços de gravetos, folhas secas e poeira.

agora é o vento,
não o sopro.
o vento invade entredentes e tilintes
nosso paladar das coisas,
freme até nossa saliva, granuloso,
com o tempo arenoso nas gengivas.


Ana Claudia Abrantes

6 comentários:

Catarina Poeta disse...

O vento passa em nossos pensamentos. Belo pensamento este!
Beijo!

Barbara disse...

O vento uiva em nossos ouvidos, levando embora o tempo que passou...

Que inspiração!
:D

PAZ!

Anônimo disse...

simplesmente lindo!

bj

Anônimo disse...

Seu vento me deu arrepio. Beleza de poema!
Adoro sua intensidade. =0


Beijos.

O Neto do Herculano disse...

Entre o tempo e o vento: poesia.

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

"o vento que só não desfaz
o caminho da luz indireta
sobre as flores
que arrancamos,
" gostei do poema por interiro , mas a imagem desta quadra ficou indo e vindo em mim neste comecinho de tarde