quinta-feira, 18 de março de 2010

Esperança

Sob os panos da capa e sem memória, um rosto.
Nas costas uma bagagem que se teve de aprender a jogar fora.
Um vento sagrado em lacunas,
Em vazios por onde se esvaem os méritos e todos os dons.

Ainda assim o homem pinta
Uma flor brotando no compasso dos pulsos, dos pulsos.
Por fora e no pulso só um botão, por dentro o caule na veia.
E em todo o antebraço interno, o hematoma roxo, amarelado
Na base da branca flor.
É necessário com cuidado puxá-la
como se puxa uma fístula por um fio, fístula-flor;
puxá-la quase cirurgicamente pela veia.
E depositá-la para adorno dos olhos
Atrás das orelhas a dor
Nos olhos.

Mas para passar a dor é preciso
Comer o céu de Chagall
Dançar de vermelho
Dar quatrocentos murros nas palavras e depois se render.
É preciso esvaziar de si o sopro e derramar sobre todos os papéis soltos (!) quando um anjo passar.
Nada voará em vão quando um anjo passar.
Sobre o desconsolo, sobre o consolo do silêncio, o vento.


E então sobre a capa agora um novo rosto
Na moldura de flor presa às orelhas.
Sobre a capa sacudida, com os olhos enfeitados de flor,
Limpar o rosto,
Limpar os pulsos.
Limpar o rosto do pó que o vento não levou,
Limpar os pulsos dos estragos da flor.
Fotografar de novo e enfim o rosto ao vento.
Fotografar de novo e sem véu
o céu.


Ana Claudia Abrantes
18 de março de 2010
(Para J.)

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