quarta-feira, 8 de julho de 2009

Meio amor

Era uma substituta e, como toda substituta, começava mal-amada. Eu também sou uma substituta, eu sei. Porque sei, tentei ser amável, mas além de ser substituta sou humana das piores e acabei fazendo o que todos fazem: amei menos a substituta. A substituta percebeu meu meio amor, mas, precisando ser aceita, acedeu, como é da natureza da substituição.
Os substitutos, se não avisados por alguém ou por intuição, vão desprotegidos ao encontro do mal querer implícito. O substituto desavisado já começa querente, querendo ser amado sem condição ainda para tal. A condição é somente alheia, o substituto não dá as cartas: planta nova em jardim pomposo fica na sombra; recém-chegado no banco da frente pára no primeiro sinal; passageiro novo em ônibus lotado via Madureira-Bananal às oito horas, vai encontrar lugar? Há! O substituto ardoroso é ingênuo feito saia godê na ventania; sabe que não vai dar, mas insiste e sempre paga calcinha.
Já eu sou uma substituta orgulhosa irremediável. Faço questão de ser amada não. Sou só ensaio porque vivo sem patrocínio. E se ninguém paga pra ver, não sabe o que está perdendo. Porque o substituto orgulhoso pensa que pode cativar na passarela, só que ele não sai e dá-se o desperdício igual ao de pessoa genial em universo limitado. O substituto não tem chance. Mas tem sempre quem o queira como estepe da emoção, como segundo marcador de livros, como livro fácil pra descansar de Joyce ou da G.H. É útil.
O substituto não entra no portarretrato. Aliás, retrato não é coisa pra substituto, no máximo um digitalizado facilmente apagável, nada de impressão em papel. Substituto não vai pra estante. Substitutos só vão até a cama e o canto do quarto.
Sabe-se de histórias de substitutos que surpreendem, mas geralmente quando o titular era meio displicente. Quando no fundo no fundo ele não era tão bom assim. Então o substituto, inteligente, usa a ação e a sabedoria: faz e espera. Um titular forjado sempre é desmascarado e sua magnanimidade não cabe mais num copo. Se alguém me substituir ninguém vai chorar. E olha que eu até posso transbordar.
Mas se o titular é um mito, meu caro. Mitos são mais aderentes que fantasmas. Porque os meus fantasmas não passam por portas trancadas, tudo tem limite. Já o mito é a segunda pele das paredes, é a fada dupla presa em estrelas pequenas. Contra mitos não há argumentos e o substituto repete o C.A. porque não sabe rabiscar direito. É, afinal, o C.A. dos gênios, mas eu.
Bem, a substituta... No dia em que a substituta chegou a minha casa, ela se comportou sem pretensão, bem no lugar dela, como cabe às substitutas. E por isso pacientemente eu lhe ensinei a colocar os garfos e facas na posição que eu queria sempre e sempre insistia em dizer à outra; ensinei a pôr mais "comfort" no molho das roupas, como eu não tinha tempo de lembrar à outra; ensinei a colocar menos cominho na comida, como há muito eu pretendia dizer à outra. E a outra, sua parente, dizem que está até com ciúmes. Sem razão. Porque essa outra já havia pensado em se matar, e ter pensado em se matar pelo menos uma vez na vida é condição essencial pra ser alguém pra se gostar. É que, quando se quer muito, a vida é pouca.
Minha nova substituta não tem coisa vívida. Desde que seja vida já está bom. Ela não me toca nem gosta de música. Ela não tem vontade pulando dentro dela. Ela mistura pano de prato com pano de chão porque misturaria cigarro com sonhos. Ela não precisa de portarretrato, ela não pede nada. Parece só feita de dentes parcos, marido e filhos, muitos filhos. Ela precisa de leite, não de água. Minha substituta precisa do meu compromisso social, não do meu amor e isso me mata... Vou comprar uma pomada para as manchas do seu rosto porque eu gosto de arte e do que é belo e ninguém merece ver flores pisadas dentro de casa.

P.S.
No dia em que eu me cansar de ser uma substituta, plantarei um pomar só para mim. Lá eu terei maracujás e onze horas, e plantarei de novo manga-espada. No muro alto eu me colocarei, impressa, e ficarei ali aderida. Para que nunca ninguém venha me substituir no papel de hera.


Ana Claudia Abrantes

9 comentários:

Tatiana C. disse...

"Aliás, retrato não é coisa pra substituto, no máximo um digitalizado facilmente apagável, nada de impressão em papel. Substituto não vai pra estante. Substitutos só vão até a cama e o canto do quarto."

Isso é tão real, tão próximo... tão tão....

Ana Claudia disse...

É, é bem provável que seja real... tatiana, tatuada, timbrada...

Ana Claudia disse...

Acho que é real.
É, é real...

E marca d'água, é real?
Um beijo

Stefânia disse...

adorei a palavra "querente".

e as voltas e reviravoltas que o texto dá me fez me perder um pouco e viajar por dentro do texto mais e melhor.

Ana Claudia disse...

É que querente não é carente. Querente é mais bonito.
Beijo

Anônimo disse...

Já eu sou uma substituta orgulhosa irremediável...

Anônimo disse...

Contra mitos não há argumentos...

Anônimo disse...

É que, quando se quer muito, a vida é pouca...

Ana Claudia disse...

Laura, eu já te disse que você e sua sede são chuva?