segunda-feira, 5 de maio de 2008

Bolha-de-sabão (primeiro trecho arbitrário)

Por que eu fui botar outra lá? Ela não quis levantar naquele dia de manhã. Chapada demais alegou que seu traje alcoólico não combinava com a luz do dia, vampira. Sugou sua carne a noite toda e nunca dava beijos leves: mordidas. Com raiva de cão. “Você não vai ficar aqui na minha casa, enquanto eu vou trabalhar!” Uma mulher com coxas, olhos e vagina, mas aquela voz, aquela voz de travesti, saindo talvez pelo nariz, pelo ouvido, pelos olhos (não podia ser pela boca), ressoando num agudo dissonante e afetado de “docinho, meu docinho, mas eu vou sair assim? À noite, tudo bem, mas agora são seis horas e vou parecer uma prostituta que você pagou. Não vou”. “Vai!” Ele nem a conhecia, pô, que loucura! “Te empresto uma camisa minha, te dou.” Não quero ver essa mulher de novo. “Não posso sair sem minha chave e a porta não tranca se você só bater.” “Queridinho, podemos dar outro jeito...” “Sai!” Mulher empurrada (não, ele não é violento assim), mulher puxada escada abaixo com o salto agulha quebrado no penúltimo degrau. “Filho de uma...!” E aquela voz gritando, era uma bruxa? Chega. Ela não protestou mais. Lembrou do primo que sempre a batia na infância, dizia-lhe as piores ofensas de criança: bruxa, moura-torta, diaba, burra, amarela, amarela, amarela! O primo puxando-a pelos cabelos, encostando sua cabeça no chão. Apoiava os joelhos no rosto magro dela e dizia: “Pede arrego, pede arrego!” Ela pedia. Afastava-se e começava: “Seu galinho, seu galinho!”. O xingamento que sempre ouvira da mãe no feminino podia muito bem ser usado para o primo que a odiava. Galinha. E ela o amava. Ela o amava tanto. Na mesma medida do ódio dele.

Afastou-se. Arlequim desceu a rua. Ela se afastou com um nó fino na garganta, refletido no umbigo atado a um piercing de borboleta brilhante. Era linda, era linda, sim! E os cabelos de juba loira em tons desiguais foram acompanhando o passo do Arlequim de longe. Dez metros mais ou menos de uma distância regular e crônica até o ponto... Ponto ponto ponto ponto. Em nenhum momento ele olhou pra trás. Cretino! Quer dizer, impotente! “Impotente! Brochaaaaaaaaa!” Da janela do ônibus ele viu aquela leoa desgrenhada gritando seu nome, xingamentos vulgares como a cara dela, perto da banca de jornal. “Brochaaaaaa! Você é um mole, não sobe.” Teve ímpetos de descer e dar um soco na boca daquela vadia e quebrar os dentes dela. Aquele sorriso amarelo de cigarro amarelando a pele amarela. Amarela! Amarela! Amarela! E o primo sobreposto ao Arlequim, gritando amarela, e o Arlequim parado estupefato, olhando pra ela amarela. Galinho! Amarela! Galinho! Amarela! “Brochaaaaaa!” E o Arlequim mudo, vingativo dá um sorriso parental pra ela: amarela...

Finalmente Arlequim saltou na Rio Branco com a imagem de um loira magrela enfiada numa saia-lenço preta e mini, blusa de cetim grafite. O olhar havia acompanhado a lombriga loira que ele havia levado pra cama. Vergonha. Fiasco. Tinha de parar de beber antes de levar alguém pra sua cama. Agora aquilo. Vergonha. Foi coisa demais aquele escândalo no começo da manhã. Aquilo combinado a uma dor de cabeça de Bohemia, Itaipava, Skol, Sol. Desgraça, não podia misturar nem a marca. Vadia. Tinha de ter descido do ônibus e chutado a barriga de borboleta até ela perder o útero. E aquele suor frio, aquele sangue-frio à força. Aquela serenidade extraída a fórceps só pra não passar mais vergonha e quem sabe silenciar aquela magrela matraca. Era muito. Só podia dar naquele escroto daquele faniquito que ele tinha e que o acompanhava vida afora ainda em segredo. Vadia, ela me paga essa crise. Se parar na minha frente eu chuto.


Ana Claudia Abrantes

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