sábado, 27 de dezembro de 2008
Gavetas
Novos vícios
Novos vícios.
Ana Claudia Abrantes
sábado, 20 de dezembro de 2008
Sobre crimes (para o Nilson)
Ou menos que isso, vestígios: uma brisa correndo entre a janela e o basculante sempre às cinco e quinze antes de ela chegar. O cachorro que se ergue às cinco e vinte e ainda espera que a porta... E as begônias secas há um mês e a empregada que não canta mais e a janela fechada, a cortina fechada, transpondo a noite para o quarto às três da tarde.
E tudo que espera é testemunha de um crime. Anunciado. Postergado. Consumado.
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
pedido
são coisas impossíveis?
Ana Claudia Abrantes
Simulacro
E, depois de tudo,
A luz do meio-dia será clara demais.
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
tombo no escuro II
quebrando na terra, some.
no frio da terra é escuro.
desaparecendo.
Ana Claudia Abrantes
canção de amor
e se a música acabou, porque é que o compasso fica, batendo crônico no meu peito?
Ana Claudia Abrantes
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
Passo de mestre II
Ana Claudia Abrantes Moreira
Passo de mestre
Um dia é hoje, amanhã é depois. Um dia também pode ser futuro e depois pode não dar tempo. Tarde nem sempre é. Para o amor existe o sempre. E o nunca. Amor que nunca morre se transforma em amizade, ou chuva. Contra a vidraça eu boto. O meu nariz. E vejo os pingos escorrendo junto à minha. Coriza. Meus olhos hoje estão molhados. Ano que vem, cansados. Mês que vem estarei. De férias. Semana que vem recupero. As notas. Só mais um dezembrinho e então. Eu passo.
Ana Claudia Abrantes
09 de dezembro de 2008
19 horas e 8 minutos
É Fernando Pessoa quem me inspira essa, ele que nunca conheceu “quem tivesse levado porrada".
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
Hai cai?
Ana Claudia Abrantes
domingo, 7 de dezembro de 2008
Desvio
no caminho certo protocolado fica até bem, mas pálido. Cacofônico e despetalado tem mais o gosto da tragédia que sigo, ágrafa. Meu caminho é o erro.
Ana Claudia Abrantes
brevíssimos IX
eu queria que só uma estrelinha bastasse a um buraco negro.
das inutilidades
na guerra entre deuses e titãs
uma ninfa é belíssima.
Ana Claudia Abrantes
sábado, 6 de dezembro de 2008
Macacos
(Trechinho inspirado em Lisete)
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
Não-frases
que criaram um sistema esperto de defesa e distanciamento
que foge das idiossincrasias daqueles espíritos
que se destacariam na multidão das modas
que aprisionam as mentes mais vaidosas
que não seduzem aqueles espíritos que
se destacariam.
Naquela moça, a multiplicidade do não
que gerou a multiplicidade do quase
que não a levou a lugar algum que
fosse um pouco sólido.
Naquela moça, o não que o medo fez
que não voltasse os olhos.
Naquela moça, o não
que não sabe que não sabe nada.
Ana Claudia Abrantes
01 de dezembro de 2008
sábado, 29 de novembro de 2008
irritadiço
Prostituição é que é oxítona
Ana Claudia Abrantes
28 de novembro de 2008
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
O esqueleto
É por elas que sua
uma delicadeza nos olhos,
um amor engasgado,
um nó.
E porque não se pode quebrar,
veda, todos os dias, com uma mistura de cal, cuspe e mágoa
as próprias rachaduras.
Mas no fim do dia é que vem o desejo
de um banho de alecrim,
água de sálvia, água que o salve...
E o desejo é sempre tão forte que, dos sonhos, ele sempre desperta
com os ossos úmidos.
Ana Claudia Abrantes
27 de novembro de 2008
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Humana face
O espelho embaça
aquilo que não se desvela.
Na turba só um gesto
faz silêncio.
Mas pênis multifacetados, hiper-coloridos se revelam:
pedófilos na festinha infantil.
Humana face.
Subliminares sugestões do pensamento pueril/viril-vil escorrem
da frente
da testa
dos incisivos...
dos falos.
Transbordam frente à face o desvario
da nuca arrepiada em impulso ríspido
de obnubilar
o rosto e a alma.
De nada adianta.
Humana face:
pelos cantos dos lábios e nas covinhas
pelas frestas dos olhos, pelas narinas, pelas orelhas, pelas tetas
pelo ânus, pelos póros todos, pelo pênis, pela vagina
transborda a humana pasta, o humano plasma
de riso mijo leite cera sêmen enxofre e lágrimas.
Ana Claudia Abrantes
26 de novembro de 2008
terça-feira, 18 de novembro de 2008
sedeliciamantes (segunda versão de "recíproca)
de sêmen e vulva estalo
néctar fímbria de plasma e paz universal
delicicadamente e superpostos
delícia seiva Alice e Vício a postos
e díspares
e tonitruantes no mesmo tom
delicicadamente e superpostos
suor refluxo ardor soluço soluço
amalgamágica diafragma nu
diafragma união ventral
decúbito em ângulo súbito
180 graus
simétricos
sinérgicos
sérios
síntese síncope cópula cúpula
U
Ana Claudia Abrantes
terça-feira, 11 de novembro de 2008
anselmo
Ana Claudia Abrantes
Distraído
Ana Claudia Abrantes
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
entrelinha
no verso do vento, uma brisa só no vão do vento,
um pensamento só
versátil, o reverso do verso é a entrelinha.
a entrelinha é do verso o contra-verso virulento, é o vento.
a entrelinha é do verso a vice-versa recíproca, é o imenso
desejo de
nunca
preencher o vazio...
Ana Claudia Abrantes
astrologia
Ana Claudia Abrantes
sinos que não tocam
catatônica mudez de labirinto
consoante muda um grito em interru p ção
suspiros suspensos sob o céu da boca
um sino que ninguém tocou
sinal inerte de aviso de um elo perdido
e já não sou eu nem outra. nem sou.
Ana Claudia Abrantes
sábado, 25 de outubro de 2008
nietzche
do maior para o menor seria a reforma agrária, mas não é assim.
é dos últimos para os primeiros, como falou o Senhor.
e a profecia se cumpre, sim (!): primeiro o “z”, que é sempre o último no alfabeto,
depois as curvas do meio do “s”,
e “c” de casa no final, embora esse tenha o terceiro lugar no abc.
assim: Nietzsche!
eis um semiótico modo de guardar um número de telefone que se vai esquecer
nos fundos da memória curta para uso rápido.
e nunca mais vai se ligar para lá: _ alô, o nietczchiez está?
mas o exemplo improcedente não confere
nem com terras, nem com Deus, nem com as telecomunicações.
todos talvez pelos mesmos motivos:
niestzche, nii-lista que ele é, nem tem nome na lista telefônica.
Ana Claudia Abrantes
25/10/2008
terça-feira, 21 de outubro de 2008
Patrícia
Como vou explicar aquilo que é minha melhor expressão nesse mundo? Sim, na minha opinião. Qualquer um que me vir, tentando esclarecer o que me vai por dentro, qualquer amor, amigo, amiga que já me viu tentando explicar o que me é mais caro já notou: eu não sei, Patrícia.
Gaguejar, titubear, achar engraçado, temer, chorar é pouco. Falar num campo minado então, vai dar merda. Aí não tem jeito, melhor vestir a roupa asséptica do distanciamento, do senso comum para a voz não sair embargada e acabar obliterando as idéias.
As palavras escritas não me escondem, não. Elas me revelam. Selvagem eu sou é por dentro. Muitos dizem que não entendem nada, outros dizem que dá uma coisa... Então confio na entrelinha _ meu demônio pessoal de estimação. Mas sim, a palavra escrita me revela a mim antes de a quaisquer outros. Saquei, escrevendo, o quanto eu gostava do Jacques; confirmei, numa explosão, que eu amo minha amiga de infância, a Carla.
É que a argumentação me prende muito sabe. Argumentar é pura vaidade, pura vaidade. A poesia, não. Não falo dos poetas, entende, falo da poesia. E a poesia, essa linguagem simbólica, essa combinação vermelha e úmida de palavras e sons... A poesia que fica trotando no céu da minha boca... A poesia está acima de todas as falácias e também de todas as rimas. A poesia me absolve de mim.
Mas não. Não é verdade que é só pra mim. É que é primeiro pra mim, é diferente. As parcerias que me faltam vêm dessa vida de professora que não me dá folga (sem estereótipos, nem queixas inócuas tá, não estou aqui nem na sala pra isso, blá, blá, blá...). Também sou uma internauta analfabeta, daí que minha poesia fica quase afônica; eu é que não sei lhe dar veículos. E claro que eu gostaria de interagir com outros escritores e leitores, eu sou até simpática... Nas férias (ou na segunda-feira!) eu começo a organizar as parcerias desse blog aqui, prometo.
E aí, eu te dei material para a tese que vai se transformando em algo maior? Se quiser, é só pedir que tem mais aqui.
Um beijo pra ti, e aproveitando a oportunidade, um beijo pra todo mundo...
Ana Claudia
P.S. Qualquer tom mais jocosinho (que palavra legal...) é pura brincadeira. Mesmo.
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
boa noite, amor
delicado mar
de amar ego
é amar-go
amar o amor.
boa noite, amor
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Palma da mão
A palma da mão da vidente é onde os mares principiam, onde a vida recomeça em festa vã e-terna, e a morte espera calmamente a sorte do dia d de alguém. Como num ponto em que todas as linhas se superpõem e se constituem no norte da rosa dos ventos _ uma rosa de norte e sul, leste e oeste em S e no centro um grande O: SOS norteando para o infinito azul.
Depressão matutina, mas a manhã estava, diferentemente dos outros dias, dos meses que se seguiam frios, a manhã estava azul. É com a cor azul que recomeço essa história.
Continuo a escrever (agora menos)... e a viver. Mas sem saber o que há na palma da mão da vidente, ou sem conhecer as linhas do meu caminho; sem fazer diretamente as perguntas que me sufocam e sufocam a todos nós.
Eu nasci azul, de tão abafada...
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
Auto-conhecimento brevíssimo
eu morro, mas não rastejo.
proteção:
1)liberdade
2)ter para onde retornar
pertencer:
ter para onde retornar.
ter a quem acolher.
Ana Claudia Abrantes
29/08/08
terça-feira, 26 de agosto de 2008
moeda
qual o nome quando se quer carinho em troca?
qual o preço do teu amor, beija-flor (?), eu pago.
Ana Claudia Abrantes
Aceitação
Se eu disser à Carla que vou ser professora de tarô na lua, ela dirá “Claro, claro, por que não?”
Se eu disser à Carla que a amo,
ela vai dizer que me ama também.
Ana Claudia Abrantes
08/08/2008
Para Carla com um dos tantos nomes para o amor.
cobra-me/cubra-me
os beijos que eu te recusar
as palavras de amor que eu poupar
um rosto em lateral de recusa
toda a economia desperdiçada
cubra-me
de versos e de teus sentidos
Ana Claudia Abrantes
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
asas
eu adoro teus olhos vestidos com teus olhos ternos
eu adoro teu rosto vestido com a tua barba
sem etiqueta, sem bons tons, sem arma.
eu adoro teus dedos desenhando minhas palavras
minha voz é tela que tu fazes plástica
minha forma amorfa vai criando as asas
de palavra-pássaro.
Ana Claudia Abrantes
Para Jacques, com carinho
terça-feira, 29 de julho de 2008
Sulinho-me... e circulo-te
Ana Claudia Abrantes
29/07/2008
Sonhos
Óbvio que sonho sonhos que lamento óbvios sonhos de ternura e ódio contra as próprias vísceras e sim.
Sim aos que seriam nossos que diriam lógicos aos nossos sonhos, “sim!”.
Vício que lamenta sonhos de ternura e ópio de um filho pródigo que fugiu do sim que seguiu o fim que manteve além o infinito bem, o esquecido mal, o prevenido sal na ponta da língua, do umbigo, do laço que se desfez e rápido se escondeu num átimo do tempo e o máximo a contento é o mínimo que se pode ser, que se pode esperar, que se pode sonhar. Com um vazio de notas, com uma caixa vazia, uma concha vazia, uma mão aberta em concha, um silêncio aberto em entrelinha, e as demandas (próprias e alheias) cheias de gás e de lágrimas.
Ana Claudia Abrantes
29/07/2008
sábado, 19 de julho de 2008
Sobre a beleza
Que a beleza pode ser uma prisão é o óbvio repetido.
Carência, por exemplo. Carência demais corre o risco de ser algo bem feio. Lágrimas em excesso, falta, baba de choro, sofrimentos, letargia... Mas se um amigo, amigo mesmo, pergunta como vamos, querendo de verdade saber a resposta, quantos de nós não diríamos:
_ Ótimo! Melhor impossível!
E por trás dos olhos aquelas nuvens...
Acabamos de levar o maior pé na bunda, perdemos o emprego, fizemos a pior merda da vida. Mas está tudo ó-ti-mo!
Será que andamos querendo ser bonitos demais? Não fisicamente falando, mas... Todo mundo faz cara de paisagem... Eu mesma, quantas vezes não fui blasé...
E em nome da carinha blasé, da atitude blasé, em nome da não exposição, em nome da discrição, a bendita discrição...
Até agora a beleza da discrição não me revelou e, se eu não me revelo, serei pela metade, uma não-eu eternamente... Quase uma maldição isso...
A tal personagem do livro de Clarice Lispector (G.H.) se expõe à enorme surpresa diante da pobreza da coisa dita:
“Pois nunca, até hoje, temi tão pouco a falta de bom-gosto. Escrevi: “vagalhões de mudez”, o que antes nao diria, pois sempre respeitei a beleza (...) Disse “vagalhões de mudez”, meu coração se inclina humilde e eu aceito. (...) Quanto eu deveria ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética...”
E eu penso:
Quanto que a estética já não fez de mim metade de mim mesma? Quanto não impediu o outro de me ver? Quanto não me impediu o aprofundamento, a inclusão nas coisas, nas pessoas. Quanto o bom gosto não nos prejudica , tornando-nos pseudo-rochas, inalcançáveis, porém belíssimos...
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 14 de julho de 2008
Gramática ou poesia? Uma questão.
O "agora" acorda todos os sentidos e suas urgências. Ele vem como vai, depressa. É um tempo que não existe porque se consome naquilo que consome.
O "ainda" é a angústia da demora. O bom que ainda não veio, o mau que ainda não terminou.
"Nunca" é peremptoriamente o não. Redondo. Enquanto que o "sempre" é a eterna delicadeza do sim: a cor branca, a letra a, a porta aberta. Ambos, no entanto pecam pela presunção.
Mas essa aula de gramática não existe, talvez seja "só" poesia...
(Uma anacrônica pensando a vida. E os poemas seguem...)
ainda
agora
é finda
e linda
a moça
ainda
é?
mais linda
ainda
é
a menina
ou a
desmedida
da mulher?
ainda
agora
em tempo
é tempo
ainda
de dizer?
que a hora
é
ainda agora
e o hoje
e o ontem
têm
você.
Ana Claudia Abrantes
indelével
encontro
aqui
cá.
hoje
ainda...
ali
lá.
longe
distante
ausente.
agora presente:
sempre indelével.
Ana Claudia Abrantes
quinta-feira, 10 de julho de 2008
sertão
quinta-feira, 26 de junho de 2008
tristeza (alerta)
preparar-se para morrer grávida
e todas essas coisas que acabam com os nossos sonhos
Ana Claudia Abrantes
domingo, 22 de junho de 2008
Plano
Era obrigatório correr pulando os galhos e abaixando-se às vezes diante de outros tantos porque, apesar da extensão da estrada, as árvores pareciam idosas teimosas em ocupar o espaço que entendiam como seu. Corria. Atrás de si, a uns cinqüenta metros, vinha uma moça gorda, de cabelo preto e preso no alto da cabeça, uma blusa quente, cinza, uma calça jeans muito apertada ao corpo. Ela corria e chorava ao mesmo tempo porque sabia que não conseguiria.
Eles vinham na direção das duas e a primeira pensou em voar. Começou a levantar do chão, erguendo-se a uns três metros, correndo ao mesmo tempo. Tinha a esperança de que se salvaria assim e sofria pela garota gorda que chorava insistente, atrapalhando uma corrida inútil porque a própria se sabia inevitavelmente capturada. Mas como nem todos podem ser salvos, a primeira tratava de manter seus três metros acima do chão. Sem conseguir sustentá-los por muito mais tempo, rezou para que a futura queda fosse em lugar seguro, como devem rezar os pára-quedistas iniciantes. Teve certeza de que perdia o controle do vôo quando começou a se sentir inclinando, o corpo não voava mais ereto. Agora tombava a cabeça e o tronco como em decúbito ventral e então só via a copa das árvores ressecadas. O céu tinha um crepúsculo de um cinza chumbo inusitado em crepúsculos, com a luz do dia soltando-se em frestas de prata entre nuvens pesadas. Naquela posição inclinada, a moça não via o grupo que a perseguia nem a estrada erma. Via outra coisa, algo que lhe parecia uma pintura tenebrosa, só que rápida: galhos marrons, retorcidos, ressecados em primeiro plano sobre um fundo pesado de prata e chumbo. Em alta velocidade, era tudo assustador.
Caiu em frente ao número 181 de uma rua residencial. O rosto estava marcados pelas pedrinhas do chão. Viu o muro de tijolinhos pintados de abóbora. Na parte superior do muro, grades pontiagudas de ferro mal pintado de cinza. Outras pessoas estavam paradas (também com o rosto marcado pelas pedrinhas) em frente ao número 181 com uma expressão de sem entender.
O robusto pastor-alemão da casa os recebeu com lambidas dóceis e inocentes para seu espanto. Perceberam que o carro que se aproximava era dos donos da casa porque o cão imediatamente se distraiu, pegou um pintinho de borracha velha e começou a abanar o rabo, excitado, esperando o carro. Quando os criminosos saltaram, alguém disse que era tarde e ela subiu na única coluna sem grade do muro para preparar o vôo, mas um deles foi mais rápido e sacou o revólver. Imaginou-se tragédia de pássaro ferido em pleno vôo, tiro bala projétil de asas em disparada ao chão. Tão veloz quanto o movimento do criminoso foi o seu recolher de asas.
O marginal, em gestos treinados de quem sabe manejar malabares, trouxe todos com uma linha amarrada a seus corpos até o muro, virando e desvirando cada um como marionetes. Com a mesma linha que os circulava, obrigou-os a sentar, levantar, bater contra o muro, até que os outros do bando soltaram balões de aniversário e os fios imediatamente se soltaram. Os balões eram coloridos. Serpentinas voavam alegres, confetes se amontoavam no chão e, sem cumprir ordens, deveras cumprindo, foram brincar com os balões, livres e felizes. Parece que foi sua última felicidade.
Depois entraram no número 181, coagidos. Puseram todos a serviço, um serviço que nunca se cumpria, e rasparam-lhes as cabeças. Obrigaram o grupo a vestir roupas padronizadas masculinas. Mas Renata era corpulenta, e o desenho dos quadris e dos seios saltava por baixo das roupas.
Estavam em tédio escravizado, sentados, esperando algum arbítrio, quado o vulto dele entrou no lavabo onde Renata se banhava. João disse que já sabia daquele envolvimento com um orgulho ferido de quem gostava de Renata. Mas a moça ouvia e intuía que não havia nada entre Renata e ele. Quando ambos ouviram barulho de objetos caindo e gritos abafados pelas mãos enormes dele, tiveram certeza do estupro de Renata. João desceu da sua arrogância de coração partido e choramingou, fraco: "Mas ele vai acabar com a vida de todos nós." Nesse instante, Tereza descia as escadas que ficavam na lateral do banheiro e levavam ao segundo andar. Vinha amparada por Joana, ambas com uma expressão terrível que denunciava que Tereza havia acabado de ser violentada também. O dedo indicador de sua mão esquerda estava quebrado e ela o segurava com uma espécie de dignidade como se tivesse se saído bem do pior e tivesse conseguido salvar alguma parte íntegra no corpo.
Nisso chegaram os outros homens, carregando enormes bolsas de ginástica. Eram altos e um deles olhou para ela. Até então conseguira passar despercebida com seu corpo franzino disfarçado pelas roupas de menino, a cabeça raspada, os olhos sempre apertados. Mas ele viu, pela linha entre as pálpebras, os seus olhos verdes. Então viu-se em perigo tátil, real pela primeira vez, e começou a planejar sua fuga que antes parecia impossível. Desespero. Os vizinhos tinham vários cachorros e pareciam amistosos... Sua capacidade de voar estava irremediavelmente travada.
Ana Claudia Abrantes
quinta-feira, 19 de junho de 2008
tpm
segunda-feira, 2 de junho de 2008
Á noite (reflexãozinha...)
Agora suspendo castelos de cartas no vento, ancoro barcos de papel, ilumino o dia com lanternas. E em meu caminho fico esperando estrelas que eu não deixo brilhar.
(Depois de ler Noite sem lua, de SMS e TS)
Ana Claudia Abrantes
de novo
vai nascer outro homem
e celebraremos sua morte com a euforia dos corredores
que se jogam nos braços da torcida.
vai nascer outro homem
e celebraremos sua morte com gargalhadas
possuídas pela dor.
e o sangue manchará a lágrima de liberdade
e o sangue banhará o corpo do morto
tal como e também
batizará o novo homem.
e o sangue forjará um novo homem de água fluida,
de água cristalina.
Ana Claudia Abrantes
O caminho reverso: de borboleta à lagarta


Uma sanguessuga desprende um ferrão. E embora poucos tenham visto a agulha desta que aqui vos fala, ela fere. Mas é teu próprio incômodo o que me desarma e quebra minha agulha, coisa que tua indiferença não conseguiria. É que entre a mordida e o beijo a distância é mínima. E se uma gota de vida pendesse de tuas narinas símias para meus dedos, eu tocaria de leve, com (nossa(?)) compreensão, teus olhos quem sabe semi-cerrados aos meus medos/defeitos humanos, caso não tivesses insistido, "até então", em me veres ninfa.
Ana Claudia Abrantes
sábado, 31 de maio de 2008
Bolha-de-sabão (trecho arbitrário)
Setembro já se aproximava novamente e agora? Como estaria a moça agindo? Como uma mulher sem útero sente a maternidade? E então uma sem vagina sente o amor? Melhor pra ela não sentir, e ter só a lembrança da cama com ele e dar a seus namoradinhos apenas um carinho sustentável por si sem avançar além do bom das coisas, das aparências, dos contratos, das pessoas. Egoísmo puro, mas seu desejo incompleto andava com ela então ela que lhe viesse cobrar a feminilidade. Ele a devolveria com juros e com vontade e com velas e lençóis de renda perfumados pelos amaciantes de roupa de mais qualidade e um pouco de essência de sândalo talvez. Maria Betânia cantando “tuas mãos foram minhas com calma” e Bina segurando as mãos dele, fixando-as com um olhar beirando o infantil era a ternura sexual mais impagável da sua vida. E depois disso mais nenhuma conseguiu ser mais bonita que Bina que, no entanto, decidiu abandonar o barco às três e meia da manhã de uma segunda-feira fresca de verão. Ele bateu a porta com a força que não foi suficiente. Não foi força suficiente para buscá-la no corredor e abrir o verbo de uma vez: mulher, não vá embora que eu te quero desse jeito mesmo casto dentro da tua falta de vergonha. Não vá, porra, fica aí até amanhã que a gente conversa; eu só estou com muito sono, eu tô ferrado, mas sei que amanhã não vou aturar a tua ausência.
Mas Arlequim era blasé, e nessas horas isso quer dizer do tipo normal. Que não faz tempestade em copo d´água, não faz escândalo, não vacila, não erra.
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 30 de maio de 2008
Existo sim; eu sou um unicórnio
Meu desafio é a verdade. É paradoxalmente muito fácil. É o desafio de quem já não tem nada. A verdade vos libertará, mas a liberdade pesa mais que uma violência. Tratou-me como se fosse virulenta, enquanto sempre te fui mais inofensiva que uma fada.
Existo sim; eu sou um unicórnio.
A miséria os unia. O pouco que se deram era o tudo que receberam da vida. Eu me apaixonei pela miséria. O pouco que tive é tudo o que tenho.
Eu te amo. Amém.
E esta é a minha oração.
quarta-feira, 28 de maio de 2008
o corpo de um poema (ou rimas no corpo II)
emprestando a pele do corpo a versos caros
pele e papel penugem - membrana e lousa
arrepiando-se ao toque de uma pena
do mais raro pergaminho o verso livre e branco,
abrindo as pernas como se abre livro novo,
cresce sem medida na oficina
esfregar papel e corpo, tinta fresca e pele úmida
lítero-sensório exercício clínico
daquele que se cura e se curva na poesia
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 5 de maio de 2008
Bolha-de-sabão (primeiro trecho arbitrário)
Por que eu fui botar outra lá? Ela não quis levantar naquele dia de manhã. Chapada demais alegou que seu traje alcoólico não combinava com a luz do dia, vampira. Sugou sua carne a noite toda e nunca dava beijos leves: mordidas. Com raiva de cão. “Você não vai ficar aqui na minha casa, enquanto eu vou trabalhar!” Uma mulher com coxas, olhos e vagina, mas aquela voz, aquela voz de travesti, saindo talvez pelo nariz, pelo ouvido, pelos olhos (não podia ser pela boca), ressoando num agudo dissonante e afetado de “docinho, meu docinho, mas eu vou sair assim? À noite, tudo bem, mas agora são seis horas e vou parecer uma prostituta que você pagou. Não vou”. “Vai!” Ele nem a conhecia, pô, que loucura! “Te empresto uma camisa minha, te dou.” Não quero ver essa mulher de novo. “Não posso sair sem minha chave e a porta não tranca se você só bater.” “Queridinho, podemos dar outro jeito...” “Sai!” Mulher empurrada (não, ele não é violento assim), mulher puxada escada abaixo com o salto agulha quebrado no penúltimo degrau. “Filho de uma...!” E aquela voz gritando, era uma bruxa? Chega. Ela não protestou mais. Lembrou do primo que sempre a batia na infância, dizia-lhe as piores ofensas de criança: bruxa, moura-torta, diaba, burra, amarela, amarela, amarela! O primo puxando-a pelos cabelos, encostando sua cabeça no chão. Apoiava os joelhos no rosto magro dela e dizia: “Pede arrego, pede arrego!” Ela pedia. Afastava-se e começava: “Seu galinho, seu galinho!”. O xingamento que sempre ouvira da mãe no feminino podia muito bem ser usado para o primo que a odiava. Galinha. E ela o amava. Ela o amava tanto. Na mesma medida do ódio dele.
Afastou-se. Arlequim desceu a rua. Ela se afastou com um nó fino na garganta, refletido no umbigo atado a um piercing de borboleta brilhante. Era linda, era linda, sim! E os cabelos de juba loira em tons desiguais foram acompanhando o passo do Arlequim de longe. Dez metros mais ou menos de uma distância regular e crônica até o ponto... Ponto ponto ponto ponto. Em nenhum momento ele olhou pra trás. Cretino! Quer dizer, impotente! “Impotente! Brochaaaaaaaaa!” Da janela do ônibus ele viu aquela leoa desgrenhada gritando seu nome, xingamentos vulgares como a cara dela, perto da banca de jornal. “Brochaaaaaa! Você é um mole, não sobe.” Teve ímpetos de descer e dar um soco na boca daquela vadia e quebrar os dentes dela. Aquele sorriso amarelo de cigarro amarelando a pele amarela. Amarela! Amarela! Amarela! E o primo sobreposto ao Arlequim, gritando amarela, e o Arlequim parado estupefato, olhando pra ela amarela. Galinho! Amarela! Galinho! Amarela! “Brochaaaaaa!” E o Arlequim mudo, vingativo dá um sorriso parental pra ela: amarela...
Finalmente Arlequim saltou na Rio Branco com a imagem de um loira magrela enfiada numa saia-lenço preta e mini, blusa de cetim grafite. O olhar havia acompanhado a lombriga loira que ele havia levado pra cama. Vergonha. Fiasco. Tinha de parar de beber antes de levar alguém pra sua cama. Agora aquilo. Vergonha. Foi coisa demais aquele escândalo no começo da manhã. Aquilo combinado a uma dor de cabeça de Bohemia, Itaipava, Skol, Sol. Desgraça, não podia misturar nem a marca. Vadia. Tinha de ter descido do ônibus e chutado a barriga de borboleta até ela perder o útero. E aquele suor frio, aquele sangue-frio à força. Aquela serenidade extraída a fórceps só pra não passar mais vergonha e quem sabe silenciar aquela magrela matraca. Era muito. Só podia dar naquele escroto daquele faniquito que ele tinha e que o acompanhava vida afora ainda
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 4 de abril de 2008
tela sobre tela
Vida água corrente, devastando nos rios
as imagens caudalosas da copa das árvores,
avassaladoramente velozes.
Ana Claudia Abrantes (foto e poema em prosa)

terça-feira, 25 de março de 2008
Mas
Dois mendigos deitados face a face com as pernas etrosadas e todo o corpo parecendo se corresponder. Olhavam-se fixamente como se olham todos os enamorados de fato. Acariciavam-se no rosto. Ele falava enquanto enroscava os dedos nos cabelos dela e ela, feminina, escutava.
Nada parecia neurótico, apesar. Um homem, uma mulher.
Difícil distinguir os sexos, olhando-se de longe. Uma magreza os uniformizava e o cinza dos shorts fazia um só borrão na calçada cinza. De perto, os ossos da face muito angulosos dele e algum quê de feminino no contorno das pernas dela é que denunciavam a sina de cada um.
Toda marquise que acolhe mendigos é testemunha desse sistema paralelo. Essa ficava em frente ao shopping, que, com suas lojas semi-cintilantes, iluminava fracamente aquela cama. Às nove da noite ainda há tantos passantes e os dois se restringiam ao namoro singelo do olhar porque não tinham pressa.
Fiquei pensando nas ausências daquele universo e não pude imaginar a intimidade sem banhos, as micoses, a desnutrição, a fome, e ainda assim... Um beijo sem o hortelã matinal, sem a fumaça da noite, um beijo pastoso de depois da refeição caçada... Uma boca sem nexo, carregando o sexo sujo nos dentes, na saliva; o orgasmo grosso da epiderme impermeável, mas... Os cheiros reais, a total ausência de perfumes, a volta à terra e à areia molhada, o asfalto frio, o vento de barata do bueiro próximo, contudo...
Minha reflexão durou o caminho até o carro. Em tempos de “amor líquido”, aquele anoréxico amor cinza reagia. Ele registraria melhor na calçada a intrínseca relação entre a miséria e as humanidades a que fui me sentindo condenada... e cada dia mais sem as antigas palavras. “Amar em diagonal é coisa mais esquisita, no entanto...”
domingo, 23 de março de 2008
talvez
qual a cor se alguém beijar o pânico?
Ana Claudia Abrantes
brevíssimos VIII
a tristeza afetara a fisionomia e então a maturidade se instalou no rosto como nunca e para sempre.
definição
toda definição é pretensiosa.
tristeza
meus olhos ficaram azuis-marinhos.
segunda-feira, 17 de março de 2008
dos incêndios
se a combustão espontânea é iminente, até um naufrágio é tábua.
mas mantenha fora de seu holocausto o outro.
Ana Claudia Abrantes
brevíssimos VII
pensa bem. você gosta de ser cortado? gosta?
violência em uma nota
e então o baobá virou bonsai.
química
fácil como um sorriso
face a face a ti
facinho
Ana Claudia Abrantes
epitáfio (um resumo)
depois me deixe só a saliva no canto da boca
que eu sei ficar com o que me resta e que é só meu.
Ana Claudia Abrantes
epitáfio
depois.
depois me deixe só a saliva no canto da boca
que eu sei ficar com o que me resta e que é só meu.
foi só aqui que aconteceu,
foi só aqui que a vida fez seu universo em fábula
embrulhado em reluzente bolha de sabão que explodiu do amanhã.
Ana Claudia Abrantes
três e quatro
abra-se o sol para a lua entrar abra-se o mar.
abra-se o calor e instale-se o frio abra-se o rio.
e que este amor abra-se assim e vá.
vá adiante além embora em boa hora.
que ele desista e não insista amor meu
louco como espada em algodão inofensivo
manchando de vermelho sem sentido a cerda a lã o vinco
da pele pálida de esperança retardada em biênio.
a bienal do amor na minha casa
é onde o coração mancha de ácido a entrega dos vazios.
amor que se perdeu em suspensão sem nome,
amor que se esqueceu de acontecer
como mentira quintanesca e tão inocente
porque mentira de criança em quem se crê.
que venha a idade, me invada, arte
de fazer do tempo o aprendiz do torto irregular
para acolher a curva e o que há, depois.
depois me deixe só a saliva no canto da boca
que eu sei ficar com o que me resta e que é só meu.
foi só aqui que aconteceu,
foi só aqui que a vida fez seu universo em fábula,
embrulhado em reluzente bolha de sabão que explodiu do amanhã.
Ana Claudia Abrantes
domingo, 16 de março de 2008
um lugar de igualdade
Fora
tudo lembrava antítese.
tudo lembrava pequenez e hipertrofia.
o eclipse do sol no teto e um vento quase a derrubar os passarinhos.
Ali
tudo lembrava que virava enguia
esguia, esquiou entorses, patinou em lagoa vasta
fluida como água que toma a forma do continente.
espalhar-se para ser elástica,
contorcer-se para alongar-se.
para tomar espaço, gaseificar-se.
para perder-se, fragmentar-se.
escorrer, permeando o concreto,
infiltrar as muralhas do outro.
desviar contornando, abraçando
a extensão dos volumes, inclusive os enormes _
como água.
e achar-se enfim caco a caco, pedaço de não e sim.
e então igualar-se, ser mágica:
expandir-se do chão ao teto, nivelar-se:
dar ao corpo justamente
a dimensão do pensamento.
Ana Claudia Abrantes
(março de 2008)
rimas no corpo
(das frases: Degusta-me ou te decifro)
rimas no corpo
no topo
da pele
escreve poemas
nas mãos
nas palmas
nas nádegas
nas maçãs
do rosto
o corpo
um altar
uma oferta
ao somelier do seu
corpo.
Ana Claudia Abrantes
(março de 2008)
(Inspirado no resumo do filme “Livro de cabeceira”)