quarta-feira, 28 de novembro de 2007
água na boca
como sorvendo ardência de tamarindo
como adoçar limão na ostra
que saliva em pêlo áspero,
cai em gota cítrica
que quebra, enfim,
caquinhos ácidos
nos pés
nos pés
nos pés.
Ana Claudia Abrantes
rasos d'água (2º tempo)

lácrima plus a olho nu vista
é lupa por atravessar o olho mágico.
num frasco plástico de solução coloidal,
plus lágrima estepe.
para olhos secos e soluções ressecadas.
mas
por trás das pálpebras
um oceano de luz a dentro: fotofobia.
a solução oftalmo-lógica é enfocar-te e tu a mim.
ph neutro para alívio da córnea, meu coliriozinho de afeto,
beija-me os olhos fechados!
e venda-me a todos os defeitos
para umectar-me a alma, o corpo e meus olhos azuis,
claros.
Ana Claudia Abrantes
terça-feira, 20 de novembro de 2007
constatação
mandamentos
amar também o esdrúxulo sob a pele,
mastigar as margaridas sobre a mesa,
deitar com um corpo cujas carnes,
dobram-se sobre suas carnes que serão iguais.
nunca fugir das putas, e sim pedir-lhes informações
das mais corriqueiras.
na adolescência não fumar nem cheirar
porque há o perigo de tragar o próprio corpo, e sabe-se.
saber-se aberração _
fantasiada com a moral, é um segredo.
amantes e amigos não se aproximariam se soubessem
a inocência vil, o verme
que excreta flores.
mas amar
e pagar também o preço.
e depois de provar tudo,
voltar todos os dias
tradicionalmente azul.
Ana Claudia Abrantes
Sob influência do filme “A pele”.
sertão
ser tão dentro...
ser nada.
árido ser tão sem água.
ser tão dentro, sertão:
terra fértil, infértil craquelada
pela seca desses tempos tão sem.
ser tão dentro hoje é
sertão dentro aqui.
Ana Claudia Abrantes
o bonde
e eu não vou fugir na contra-mão
porque o bonde só quebra quem se choca
e só pega quem corre ou salta
ou faz outro malabarismo qualquer.
ademais
meu pai amava andar de bonde
porque lá se contempla o que se deixou ao correr
e o que se quer alcançar, sentando.
pai, o bonde é mesmo uma lição de vida.
Ana Claudia Abrantes
incompetência
amar em diagonal é coisa mais esquisita
mas ama-se
ama-se um alcoólatra, uma falsa,
ama-se a testa franzida (tão bonita) dele.
ama-se até o barulho que ela faz ao mastigar.
ama-se quem se engrandece e quem se anula.
amar, em geral, não é coisa desse mundo, não.
é uma visita que o Amor insiste em fazer a esse planeta
e depois vai embora,
deixando o homem com essa rosa em botão
(ele não sabe cuidar)
nas mãos aflitas.
Ana Claudia Abrantes
estética da violência (sobre meninos e bailarinos)
a vida sem poesia é corpo em risco em queda em livre audácia do impacto,
em choque cáctus _ tenso elástico rompido.
é também uma estética, uma fórmula máscula do selvagem épico-narrativo
de menino abrupto.
a vida sem poesia é haste tensionada até o máximo grau impossível, é teste.
é testículo, é a testosterona dos sentidos primários na força ancestral bruta real patética e necessária (?).
é baque, é batuta, é percussão de samba sem letra candomblé e batente.
Scorsese, Tarantino, macacos e meninos sem lei.
é pega, é polícia, é favela de verão, futebol, urro rock Rio fálico trágico tiro e faca.
a vida sem poesia é corrida, guerra, disputa, é técnica.
é vazão do ego maior que o ego maior que.
tudo é veloz no corpo em risco dos meninos
e bailarinos de pulos sem impulso, meta sem preliminar, gol sem finta, beijo roubado, equilíbrio-segundo
e assalto.
mas, no cordão de fogo e dínamo cabe, estranho e delicado, um doce monstro:
uma fresta de luz indireta, uma seta torta, uma porta aberta:
cabe, espaçoso e mágico, um gigante urso de pelúcia.
Ana Claudia Abrantes
02/11/2007)
(Cena 11 no Municipal, durante o Festival Internacional Panorama de Dança)observação
se beijar uma mulher fosse pecado,
o pensamento estaria cheio de idéias,
e uma mancha de má qualidade
escorreria do canto da boca
do vinho tinto bebido no gargalo a duas.
beber o leite de outro leite
é dar de mamar ao desespero.
felicidade que não ousa fugir,
paralisada no intervalo dos julgamentos
e refresco das manhãs; agora
um pouco ainda mais delicadas.
Ana Claudia Abrantes
terça-feira, 25 de setembro de 2007
Vôo
Acordei. O sol continuou escondido; era uma droga de segunda-feira nublada.
O caminho até o ponto de ônibus mais uma vez foi o mesmo só que não o fiz com tanta pressa. O que eu andava em dez minutos, percorri em meia hora, acreditando que me entretinha com casas e muros...
Estava profundamente deserto. O som de meus próprios passos era a única sensação de presença. Eu me sentia menos pessoa e mais qualquer coisa. Meu olhar trabalhava mais que as pernas. Ao redor, as formas se transformavam ao seu comando.
A lata de lixo foi a primeira a se animalizar. Virei a esquina e nos deparamos. Ela estava deitada em decomposição, suor de detrito escorrendo do corpo, já era cor de ferrugem. A lata agonizava e gemia ao se enroscar no próprio lixo. Sua respiração era pastosa e exalava um forte odor acre.
Eu enxerguei aquela cena, mas não senti nojo, porque também havia algo parecido
Não respondi aos primeiros impulsos, por isso não corri, não matei o verme. Meu braço paralisado era o mais sinistro e maior espetáculo para meus olhos. Aos poucos o sangue deixou de jorrar e ficou apenas escorrendo
Desisti. E nem mesmo esperava. Era. Silêncio.
O verme em minhas mãos, gordo, foi modificando o aspecto; adquirindo umas nuanças de cor. Primeiro um brilho de escama que só se vê enviesando o olhar, violeta, levemente rosa, encorpando a cor avermelhando-se, tornando-se corpo opaco amarelo-canário.
Eu não entendia, mas amava aquela cena. Ele desprendeu lentamente o ferrão e eu não vi cicatriz. Senti que naquele momento eu paria. Minhas sangradas mãos deram a luz a um pássaro arco-íris que com seu bico cor de laranja beliscou cada um de meus dedos. Minhas forças retornavam. A impressão era de que uma cachoeira de água muito clara e mansa percorria os meus órgãos; torneava minha pleura, refrescava meus rins, infiltrava-se em meu cérebro.
Recuperava-me.
Ao sentar, percebi que já não havia lata, nem cheiros, nem verme, nem sangue. O sol antes oculto, inundava a rua com raios convictos.
Ainda em minhas mãos, pássaro colorido me olhou. De pé, pude sentir o quanto eu era senhora. Poderia trazê-lo comigo como quem guarda um talismã sagrado, mas aquele olhar de passarinho...
Abri o quanto pude todos os meus dedos e mandei que meu pássaro voasse.
Pássaro colorido voou.
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 17 de setembro de 2007
cheiro envasado a vácuo
há um modo de tirar o cheiro de um corpo; descobri ontem.
descobri que se os cheiros se misturam demais, deslocam-se da carne para o ar como o som.
depois é puxar a fragrância numa sucção estalada e guardar na boca;
suave e ousadamente como se guardariam alfinetes na bochecha.
o cheiro do outro vai se esvaindo, vai murchando num assobio em u.
desce também pelas narinas aerando a barriga, e molha a calcinha.
nesse estado, o cheiro se liquefaz, untando a cintura, as costas, a dobra dos joelhos.
até ir se solidificando em coriza noturna, depois em baba que quica na pele queimada do cóccix.
aí se mistura ao suor para cristalizar o sal.
então tem-se um produto novo que não está à venda nas farmácias, mercados, nem é patenteado ainda:
um concentrado umectante em pó, de cheiro de sal de gente, envasado hermeticamente com a força das pernas.
Ana Claudia Abrantes
domingo, 16 de setembro de 2007
brevíssimos VI
melhor tirar o caps lock
e só deixar o negrito.
deslocamento
o arco-íris não é na Lapa,
é aqui.
sustentabilidade
carinho não é coisa que se desbaste.
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 10 de setembro de 2007
liquefeita
mulher é algo que um dia vaza.
conquista os subterrâneos como infiltração de séculos,
escorrendo até onde o silêncio é mais agudo.
com úteros que abrigam mãos em concha
elas também se protegem côncavas, e às vezes explodem,
recebendo o universo.
porque tudo o que é feminino ressuscita,
e uma flor, antes de nascer, também fica em casulo.
liquefazendo
subir o rio em estação seca, desafiando o equilíbrio das pedras.
descobrir onde se esconde a água sob túneis negros.
imaginar a enxurrada, submergindo esses recantos.
desejar o frio de um batismo ateu e místico.
decantar a palavra e esperar.
depois dragar até os substantivos.
deixar falar o líquido.
Ana Claudia Abrantes
portal
árvore de beija-flor,
pata de truta,
jardim de pedras.
tudo o que habita o Sítio do Barbudinho
está deslocado na paisagem.
Ana Claudia Abrantes
sexta-feira, 7 de setembro de 2007
Sete de setembro
A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país soberano (?) chamado Brasil. Um país de caras lindas loiras, brancas, morenas, negras, sararás e, por que não, provisoriamente ruivas. E essas se espalham feito febre na cidade. Do roque ao samba, cabeças vermelhas fazem a moda. Uma droga. Vejo-me obrigada a retroceder ao toque colorido que, penso, caíra-me tão bem. Vi que aos poucos vou acastanhando minha imagem e perdendo a força quente dos primeiros meses bandeirantes com a tinta seis barra quarenta e sete exótico. Eu havia demorado a acostumar, mas depois achei que já havia nascido assim, vermelha...
A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil. Um país de gente pobre no sinal. Um não tem a extremidade dos dois braços, é descoordenado, não tem pernas; é transportado por uma cadeira-de-rodas guiada pelo peso gordo de um jovem não-trabalhador, que certamente só tem o ofício de empurrador de portador de necessidade especial do sinal do Recreio ao lado do Mundial em direção à Linha Amarela. Duas necessidades que se cruzam na mesma porcaria de encruzilhada e mancham a oração-no-carro do meu dia. Que coisa feia minha última frase! Esse Deus gordo e barbudo sempre me castiga quando pronuncio coisas fora da ética e da estética. Perdoe-me, Amigo, mas o Rio de Janeiro não deixa ninguém em paz, em silêncio interior ou em felicidade de dez minutos. Não tenho trocado (mesmo!) e o da cadeira sai reclamando graves impropérios contra a não-solidariedade, indignidade, miséria humanas. Eu também mancho o dia dele com meu carrinho tão pouco para mim, meus óculos escuros (está muito claro, poxa!), um emprego, uma cama de família, algum raro ócio. A fileira de carros irmãos (alguns nem tanto...) do sinal mancha aquela vida de falta e, ô, Barbudo, impossível não perguntar “Por quê?” É isso, “por quê?” Tão perto da praia, uma praia tão linda, mar aberto, areia clarinha, horizonte amplo, mas ali no sinal o horizonte daquelas misérias é nenhum? Para quê? Para poder ter concurso de fotografia sobre o Rio, cidade de contrastes? Para isso? Ei , ei, Senhor Gordo, é isso?
A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil. Então, feriado é dia de ligar para os amigos e ver como estão. Ela me atende guiando sua bicicleta econômica pelo trânsito em direção à praia nossa de todo fds com sol, passa pelo túnel berrando obscenidades contra minha discplicência de amiga de longa data e, no fim, me convida para tomar uma cerveja em Santa à noite, depois de eu trabalhar em casa, e ela também. Vai dispensar todo mundo para ficar só comigo, gostosa.
A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil. E eu penso que o trabalho me espera, mas a exposição do Rosa também, meus primos queriam ir comigo também, eu queria conseguir ver meu gentleman amigo virtual que espera meu tempo, uma anja diabinha sugeriu-me infernizarmos o Morro da Urca no feriado ou atacarmos o Jorge Ben Jor no Circo, mas eu tenho onze envelopes de carga para atualizar até segunda-feira e prefiro amanhã ir me recolher no sítio onde vou poder trabalhar um pouquinho junto da natureza , junto de amigos velhos e outros provavelmente novos e, quem sabe, junto de um pouco de paz que aqui no Rio não está existindo para mim. Meu Rio querido/odiado, meu bem, meu mal, amém.
A última coisa que os praieiros pensam hoje é na consolidação da colônia fulana de tal como um país chamado Brasil.
Desculpe, mas eu também não consigo hoje. Não consigo sentir um país. O sol, que há muito não vinha, finalmente deixou o céu aberto, com nuvens brancas como a minha pele a esperar os raios mais amenos de um dia delícia como esse, e eu aqui tentando parar de escrever essa crônica que insiste em jorrar abobrinhas e verdades capazes de me distanciar do trabalho. A praia deve estar cheia de cariocas que não agüentavam mais os dias nublados que a Calcanhoto já havia sinalizado como terríveis para nós. A praia deve estar cheia de trabalhadores que desafiam as leis da física no ônibus, no trânsito, no trem. Cheia de gente estafada, esbanjando alegria nas areias que escaldam nossas desesperanças. O sol finalmente veio, afinal “para todo o mal, a cura”.
Perdoe-me, Deus. A última coisa que eu penso hoje é que a fome de tudo ainda mata meus irmãos, meus não-irmãos, meus amigos, meus assassinos. Porque olhando da janela pra tudo o que existe e que é lindo, olha aquele menino..., tive a resolução de decretar por ora a minha independência, mesmo que amanhã seja novamente o dia de eu ser colonizada pelos prazos e papéis, como tantos brasileiros. E aqui vou eu à praia.
Ana Claudia Abrantes
segunda-feira, 3 de setembro de 2007
roda-gigante
topo, entreato, chão: a vida é feita de roda-gigante.
vira novelo em desenredo quando um fio solto, destecendo a narrativa,
desenrola a madrugada.
a noite segue em reta à frente em flash back, vida pião.
o brinquedo, num tranco, em rotação sobre a mão de menino,
solta-se suave, desafiando o ar para chegar ao chão num baque.
e recupera o eixo ao se inclinar até sentir cheiro da terra.
então, ferindo com a agulha o coração, o cimento,
num giro intenso, pião transformará a areia em pólvora.
Ana Claudia Abrantes
domingo primavera outono
e o verão é ali no meio da sala.
noite fresca
me passa? era só o que faltava, mas não faltava
porque o passe foi dado ali mesmo com fogo, água e vento
que da janela fria anunciava o cedo/o medo de segunda-feira.
Ana Claudia Abrantes
amor embalsamando as horas
puras orgias não se fazem em uma sexta.
porque feitiço é coisa demorada e lânguida
tem preguiça de conquistar, uma insolência retardada,
um descompromisso com as horas e a concorrência.
venha o inseguro e o passar que a vida é dura, mas leve (?)
para todos, até os levemente manchados
de hematomas que fragilizam os capilares do esterno.
tem gente que se veste de fora pra dentro.
tem gente que conta quantidades e datas,
tem gente que precisa de gente,
tem gente que nada.
mas não ter pressa não é desgastar o tempo
em miséria e sede escassa.
há de se ter consenso
entre um gancho e o pulo do gato.
movimento também é estático,
mas livrai-nos, Deus, das completas múmias,
as múmias paralíticas.
sábado, 1 de setembro de 2007
outro lugar
inesperadamente
as paredes se movem para o centro
apenas um metro quadrado no teto
desde o alto encontra o chão
as poucas fotografias
escondem o rosto dos amigos
e o espelho das janelas
se fecha
na cortina
a porta aberta adverte
a TV ligada alerta
e nada diverte
uma cama por fazer
uma avozinha dormindo
na cabeceira um livro
de espíritos
e aqui se visita outro lugar.
Sem título
Os meninos aqui têm aula de música e estou ouvindo um "Noite Feliz" ao som de violões e flautas vindo da outra sala. Só estou me interrogando por que justo o "Noite Feliz" agora em finzinho de abril. Mas está gostoso. Ih... pararam... Saco! Ela deve estar na parte teórica a professora. É bonita ela; não de uma beleza instantânea, dessa que faz homens e mulheres imantados acompanharem a efêmera deusa (ou deus) no seu caminho de glória vã. Não. Ela tem um quê de delicadeza misturada com sofisticação, uma simpatia combinada a uma polidez que se reflete polida nos cabelos negros quase à cintura e na forma longilínea. Uma fêmea, mas tão feminina. E distante... ah, distante como se penetrasse às vezes num vazio até de nada meditador, distante como se soubesse. Como se soubesse.
O menino ligou o ar-condicionado mais forte agora, não vou suportar com essa garganta pedindo água e calorzinho de chá de mãe, ou de cachaça. Saco! Tenho a impressão de ele estar olhando por trás a tela do computador. O que será que tanto escrevo? "O quartel pegou fogo, a polícia deu sinal, acuda, acuda, acuda a bandeira nacional." Os flautistas, menino, estão aqui do meu lado, vou avisar à minha outra amiga anacrônica que os flautistas de Conservatória se esconderam na sala de música. São bochechudos.
Escrevo como se a vida não bastasse _ idéia de Fernando Pessoa. Mas não basta mesmo! Ele, o Pessoa, emenda que a arte e a literatura estão aí pra mostrar que essa merda toda não é suficiente, não é a vida que se tem por dentro nem por fora. É rente, é chão. E o que nos faz levitar? Os "levantados do chão" não levitam desgarrados de sua terra. Alguns alunos que tive, pobrinhos, pobres ou pobrezinhos não levitavam no caminho que faziam de volta pra casa zigue-zagueando entre balas perdidas e caminhos impossíveis porque simplesmente eles não haviam aprendido a acreditar. "E o salva-vidas não está lá porque nãovemuuuuuus".
Eles agora começaram um "Cai cai balão" só de flautas e escuto-a dizer que não parem. O menino da sala do computador. Nunca aprendeu nenhum instrumento. Não deve ser legal que ele veja seu nome aqui. O sinal toca e o vento do ar-condicionado parece estar apontado pra minhas amígdalas. Mas ele é um fofo! "Professora, se o ar estiver muito frio, a senhora me avisa que eu diminuo." Eu estava me encolhendo... Que idade ele tem, 22, 24? Alguns de meus alunos têm menos, uns dezoito e a minha pretensão me faz acreditar que precisam tanto de mim... Preciso deixá-los, ir embora. "Acuda, acuda, acuda a bandeira nacional". Moça linda e distante como garça de penas negras, conta pra eles o sentido dessa canção. Acuda, acuda, acuda a bandeira nacional! Tá, tá, tá, preciso ir, tenho uma depilaçãozinha marcada no salão aqui perto e não posso acudir mais ninguém agora.
terça-feira, 28 de agosto de 2007
belvedere
belvedere é belo
vide o reverso do mergulho do estar de pé
olhando o mergulho que se queria dar na paisagem.
belo é ver o céu que se prolonga no horizonte
e que escorre até a copa das árvores.
belvedere é o caldo, a pasta, o caudaloso rio.
belvedere é sempre um convite ao suicídio.
e de intenso hipnotiza os olhos,
paralisando a voz ativa do ego.
única beleza toda que não se possui nem se alcança
porque, ao se alcançar, desmancha-se
em parte solta e insossa.
belvedere só o é assim:
intangível e muito ele próprio
panorama de si.
existência indenpendente
como deveria poder ser toda beleza.
domingo, 26 de agosto de 2007
desencontro II
impossível respirar com essa máscara
o arco-íris não existe
mas está ali.
alfa e ômega
emplastra pastosa massa de maná na alma.
acende perene vela de beleza à mente.
inflama ígnea íris, hímem
dos olhos voluptuosos de hórus
no escuro tumulto, vulto
da alma emplastrada da massa de húmus.
sábado, 25 de agosto de 2007
brevíssimos V
vaca louca puta distraída.
da natureza de todas as coisas
uma mulher que reúne ternura e desejo era sua amante por natureza.
no armário
queria tanto me foder
e não eu a você.
flores outras
é o máximo, porém mínimo de tudo: não tem olhos, boca, mágica.
é trágico como todo fim em ágil desalinhar-se de bicho no cio
_ é frio.
mas cabe nos intervalos entre um não e um sim;
cabe no amor, no a-amor, em mim.
cabe e, com porta incólume,
comporta incólume o amor, o a-amor, a ti
nesse incognoscível jardim de flores.
construção
flecha crônica.
então é desfazer os nós
e levantar paredes do chão
e refazer a casa
pedra a pedra?
de corte e colagem.
sexta-feira, 24 de agosto de 2007
O enforcado
agatha negra de neblina em transe
em crise em filme de ficção natural
de um mal que a película não quer
suportar é além da força que está
sobre os pés.
A noite escura da alma
é azul marinho do escuro céu
sem véu de estrelas nem láctea
imagem de brancura diáfana.
A noite escura da alma
está dependurada e crucificada
como um cristo reverso enforcada
no meu eu sem outro meu.
A noite escura da alma
está presa na sala escura
projeção sem força de luz
sem auxílio sem nome sem giz
numa lousa queimada de cinza.
A noite escura da alma
não vomita não mija não cospe,
enjoa.
Agüenta, entope os filtros
da inocência e pureza, sem propósito
sem grito, sem festa, sem lenço
de papel ou abraço.
A noite escura da alma
acompanha passeia pastosa
sem ar sem aerado
arenosa noite escura sem fim.
A noite escura da alma
me gruda me prende me chama
me cala me dosa me rende
me doma com nojo me inflama
sem misericórdia sem mistério
sem verso sem prosa
sem tempo sem medo sem vento
sem cedo.
A noite escura da alma
agarra
como pigarro encarnado
na garganta sem voz nem
canto ou saliva
nem sonho nem nada.
A noite escura da alma
me convida
ao tédio à cerveja à igreja
ao samba ao beijo ao remédio
à tarja preta.
A noite escura da alma
me alucina
me dói a cabeça e vacina
a ingenuidade.
me empurra me porra
contra a parede chapisco
me marca pro resto de mim.
A noite escura da alma
me conclui.
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
das hipóteses
se eu tivesse te encontrado ontem
e viéssemos para essa varanda como agora
hoje à noite ainda seria lua cheia.
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
signo e coisa II (ou explicação)
serenata era de vida, de deixe ir
enseada era serenata era esse
porque não sabíamos
e conhecer que uma enseada era aquilo a que não chamávamos
tirou de nós o mistério
e pensar levou-nos à metafísica alguma
e decifrar cegou-nos aos melhores códigos
de não dizer que comunicava
uma enseada de peso, tato, fluido, arrepio e cor.
terça-feira, 14 de agosto de 2007
ambrosia
açúcar deleite delicadamente vinho tinto demi-sec.
tamarindo e caramelo, yakult e caqui líquido,
e um cafezinho.
gustavo gustativo,
só mais uma provinha, pra eu limpar as papilas
sábado, 11 de agosto de 2007
signo e coisa
a palavra beijo não é molhada nem quente.
a palavra ódio é um mergulho nas vísceras
da imaginação incorrespondente ao ódio.
“desejo” é pouco para o que se sente
quando uma química ancestral
psicologicamente motivada e ardente
contrai-se em dois.
a palavra medo é o único contrário da palavra amor
e obviamente contrária à palavra entrega.
é carregada de ego, este que só se entrega no silêncio.
a palavra amor não é o amor.
Primeiro de maio
Bebê enterrado vivo pelos pais, ex-policial é acusado de chacina, cartola do Fogo chama torcida do Mengão de f.d.p. e mulambada, bando vendia vagas na faculdade por R$ 70 mil, traficante empresta arma para adolescente matar menino, Tati Quebra Barraco vai posar nua. Como? O quê? Onde? Quem viu? Quem viu um anjo, quem acredita? Se eu dissesse que vi alguém sorriria? Se o mundo implodisse em tons expressionistas e lentamente, surrealistamente, a bunda da Tati fosse escorrendo como os relógios de Dalí e como fazem com o tempo todas as bundas, se o bebezinho sobrevivesse... alguém acreditaria? Alguém ainda crê em milagre? Que lugar é reservado aos que ainda acreditam? Onde estão essas pessoas? Que lugar é reservado aos que não acreditam, mas não encontram lugar aqui? Como é possível encontrar lugar? Somos como ratos que se matam devido ao superpovoamento? Somos cachorros no cio reproduzindo comportamentos esdrúxulos, criando ninhadas que já nascem doentes? Estamos eternamente doentes, com um cancro instalado nas mãos, com estigmas de um Messias por quem esperamos, para quem oramos, por quem esperamos como a um autêntico Dom Sebastião? Sebastianismo de espera, sebastianismo de engorda para abater a carne de tantos bastiões brasileiros como eu que vão para o abate tão cordeiros de deus. E como porcos recebem o carinho, o beijo de Judas antes da morte: “apedreja essa mão vil que te afaga / escarra nessa boca que te beija.” Sem nojo agora eu o entendo. Entendo a marca de dentes que fica em quem foi mordido, entendo que uma gota de sangue entre minhas pernas é símbolo de uma dor inevitável. E como sangram os porcos traídos, como sangram as almas dos bebês enterrados, como sangram meninos mortos por adolescentes, sangro eu, todo mês, todo dia. Assim também, desde a Idade Média sangravam cristãos arrastados como o menino João. Tem fim? Tem solução? E, tornada uma gota vermelha, eu, que era azul por fora e vermelha por dentro, hoje entendo a paixão e a guerra que fazem o mundo procurar o sangue de que é feita a vida e a morte. Entendo que não consigo mais ser azul e me inclino, em vísceras avermelhadas. Mas os shows embalam o feriadão. O dia do trabalho será comemorado ao som de Daniela Mercury (foto) e Beth Carvalho, que fazem show de graça hoje,
quinta-feira, 9 de agosto de 2007
brevíssimos IV
haickryia (haicai do kryia)
respira
uma gota volta ao oceano
viver
talvez esse o equilíbrio entre medo e aventura: ventura!
carla
quando seguro sua mão, sinto-me íntima de um milênio inteiro.
brevíssimos III
Mena Barreto até a praia
minha oração pára
quando vejo o Pão-de-Açúcar.
dor do passado
dar as costas ao Pão-de-Açúcar
deixar ir II
mesmo que seja dar as costas ao Pão-de-Açúcar.
brevíssimos II
desejo
manuel, manuel
eu queria que o espírito de Deus voltasse a se mover sobre a face das minhas águas.
femina
amando amando amando almando almando almando a mando
de quem, puta quiu pariu?
amor
quase um paradoxo
um pouco de ácido no algodão-doce.
sobre a terra
espirais em diagonal
num plano acidentado de vontades
artes contrapartes e enredos
180 graus de evoluções
na avenida.
no limite da fronteira tênue
entre sim e não, céu e chão,
particulares partituras pequenas
num globo só não cabem.
o inferno e o paraíso de aventuras,
o fio inventado ou recriado
de dramas e ficções cruas.
verdades criativas e mentiras factuais
cada passo um desatino,
a cada escolha um destino.
sem opção no arbítrio
sem visão do outro dia,
sem academia.
via infinita
via líquida
via sem trégua:
gente naïf sobre a Terra.
fenda
afonia e rouquidão
disfonia cacofônica
som áspero em garganta árida
areia na deglutição
severo tom vazio de nota
música dissonante assonância obliterada
merda gástrica na mucosa: afta.
ácida faringe e laringe flácida,
claudicante, intermitente, melodia doente
anemia do timbre compactado em gás letal
ferindo a digital, maculando a marca
de uma canção que insiste em cantar
tenaz: hepática.
quarta-feira, 8 de agosto de 2007
poema de presente
(ou Para aquele ponto de Arnaldo Antunes)
A vida daqui é linda
talvez porque seja finda
talvez porque seja ainda
surpresa que não termina.
A rua parou na poesia
e pena que não seja minha
estrofe de presente é linda.
Talvez porque seja sonho,
emblema da Siqueira Campos
onde uma caminhada paralítica
aterrissa
no poema
e desfaz, por um segundo, o teorema: nó.
Golpe súbito, poema em pó
que se chupa como ki-suco,
deixando vermelha a língua,
vermelho o vestido e o dia
se eterniza na geografia
de uma estação
É verão!
Ana Claudia Abrantes
17/02/2007
Toda vez que desço na Siqueira Campos eu me deleito com aquele poema de Arnaldo Antunes. É um minuto de presente que eu retiro do meu dia, em dia ou atrasada, não importa, esse presente em minuto é meu. E assim o poema também fica um pouco meu. Um ponto dessa cidade que marca a minha vida, que me marca e eu também me dou de presente pra mim nessa hora. É um ritual, um segredo do meu espírito que se recusa a não se deliciar repetindo, repetindo em voz alta o suficiente para eu ouvir que a vista é linda, talvez porque seja linda, talvez porque não se veja e por isso mesmo seja mais linda... ainda.
incostura
desenho incompleto
beijo inconsútil iminente
desilusão do não
casa desconfigurada
desplanejada distante
divaga
nos desafios limite
tamanho castelo
de góticas fadas
desenho incompleto
constantemente divaga
roupas, bolsas, trovas, tralhas
imprescindíveis que se deixam cair
pelo caminho estranho, extra-ordinário
onde um louco impera suas ordens corretas
e incoerentes
desenho incompleto
círculo que se quer fechado
para abrigar o vácuo
como um básculo que convida
a ventania
desenho incompleto
99 peças
soltas no espaço de um intervarlo
desejo de consumir a falta
como fogo que consome o ar
ferramentas inúteis em terreno árido
paralelo infinito de caos e tédio
e suspensão em silêncio eternizado
no semi-círculo fechado
de um universo:
simples
complexo
espiralado.
por acaso
quando vejo o não escolhido
fazer sentido na narrativa
me ativa
uma luz
que deduz no distraído
enredo de uma linha
o equívoco abstrato
do interligado em foco
unívoco voto
de insegurança da vida:
surpresa caída no caminho.
ferrugem
lado A/ lado B

elas abraçam e se movem fixas
mulher protege e pede proteção
mulher protegida entrega o perdão
do ventre a força esquálida
abriga, frágil, inválida
forminha anoréxica
do útero a fêmea apaga
a força o rancor as águas
masculinas
do lado escuro clara escuridão
dois tons predominantes, dor
do outro mundo imagem colorida
em tão clarividente amor
é frio
é festa!
é filho
é sexo!
é sombra
é brilho
é drama
é nexo
E em tal distância, o complementar:
na torçao dos abraços
o desalento, que um beijo ampara.
(Sobre um abraço em Guayasamin e "O beijo" de Gustav Klimt... ou sobre tantas outras coisas também)
domingo, 5 de agosto de 2007
se soprarmos
da nuvem, desenho
do desenho, idéia
da idéia, vento
do vento, tempo
do tempo, lembrança
da lembrança, beijo
do beijo, borboleta
que sopra onde quer.