terça-feira, 25 de setembro de 2007

Vôo


Acordei. O sol continuou escondido; era uma droga de segunda-feira nublada.

O caminho até o ponto de ônibus mais uma vez foi o mesmo só que não o fiz com tanta pressa. O que eu andava em dez minutos, percorri em meia hora, acreditando que me entretinha com casas e muros...

Estava profundamente deserto. O som de meus próprios passos era a única sensação de presença. Eu me sentia menos pessoa e mais qualquer coisa. Meu olhar trabalhava mais que as pernas. Ao redor, as formas se transformavam ao seu comando.

A lata de lixo foi a primeira a se animalizar. Virei a esquina e nos deparamos. Ela estava deitada em decomposição, suor de detrito escorrendo do corpo, já era cor de ferrugem. A lata agonizava e gemia ao se enroscar no próprio lixo. Sua respiração era pastosa e exalava um forte odor acre.

Eu enxerguei aquela cena, mas não senti nojo, porque também havia algo parecido em mim. Abaixei em posição de cócoras e pude sentir a umidade morna. Bichos, espécies de vermes quase transparentes como minhocas brancas, começaram a saltar de todos os lados e se arrastavam com languidez e preguiça. Um deles veio se aproximando sem que eu sinalizasse movimento algum, veio se aproximando e chegou até meus dedos e subiu pelo meu braço. Com a garganta em suspenso num só movimento de inspiração, eu deixei. Não o perturbei. Deixei que ele descobrisse o meu tecido. Quando atingiu o pescoço, resolveu voltar à mão e se depositou na palma. Foi quando gritei de dor! O bicho se fincou na palma da minha mão com um tipo de agulha biológica, um ferrão próprio daquela estranha espécie. O branco de meu braço constrastou com o rubro do sangue, que começou como uma gota discreta e depois jorrava como vida explodindo. Era a minha agonia.

Não respondi aos primeiros impulsos, por isso não corri, não matei o verme. Meu braço paralisado era o mais sinistro e maior espetáculo para meus olhos. Aos poucos o sangue deixou de jorrar e ficou apenas escorrendo em filete. Meu fascínio era permitir que o parasita se alimentasse... de mim. E assim foi. O pequeno ser sugou-me. Eu já não suava pois não havia gotas para isso. E, fraca, caí na calçada. O tronco ligeiramente voltado para cima, o quadril virado para a direita, uma perna encolhida e a outra levemente esticada, os braços estendidos sobre a cabeça. As mãos ainda tremiam. O sangue no chão, escorrendo em fio lento, ia banhando meu corpo inteiro e não sei quanto tempo fiquei ali.

Desisti. E nem mesmo esperava. Era. Silêncio.

O verme em minhas mãos, gordo, foi modificando o aspecto; adquirindo umas nuanças de cor. Primeiro um brilho de escama que só se vê enviesando o olhar, violeta, levemente rosa, encorpando a cor avermelhando-se, tornando-se corpo opaco amarelo-canário.

Eu não entendia, mas amava aquela cena. Ele desprendeu lentamente o ferrão e eu não vi cicatriz. Senti que naquele momento eu paria. Minhas sangradas mãos deram a luz a um pássaro arco-íris que com seu bico cor de laranja beliscou cada um de meus dedos. Minhas forças retornavam. A impressão era de que uma cachoeira de água muito clara e mansa percorria os meus órgãos; torneava minha pleura, refrescava meus rins, infiltrava-se em meu cérebro.

Recuperava-me.

Ao sentar, percebi que já não havia lata, nem cheiros, nem verme, nem sangue. O sol antes oculto, inundava a rua com raios convictos.

Ainda em minhas mãos, pássaro colorido me olhou. De pé, pude sentir o quanto eu era senhora. Poderia trazê-lo comigo como quem guarda um talismã sagrado, mas aquele olhar de passarinho...

Abri o quanto pude todos os meus dedos e mandei que meu pássaro voasse.

Pássaro colorido voou.



Ana Claudia Abrantes

Um comentário:

Roberta Saavedra disse...

Ual ...

Professora, a senhora escreve muito bem ... Gostei muito do seu texto, é lindo .
[ Sou do cp2, sua aluna, turma 906, meu nome é Roberta. ]