Acordei. O sol continuou escondido; era uma droga de segunda-feira nublada.
O caminho até o ponto de ônibus mais uma vez foi o mesmo só que não o fiz com tanta pressa. O que eu andava em dez minutos, percorri em meia hora, acreditando que me entretinha com casas e muros...
Estava profundamente deserto. O som de meus próprios passos era a única sensação de presença. Eu me sentia menos pessoa e mais qualquer coisa. Meu olhar trabalhava mais que as pernas. Ao redor, as formas se transformavam ao seu comando.
A lata de lixo foi a primeira a se animalizar. Virei a esquina e nos deparamos. Ela estava deitada em decomposição, suor de detrito escorrendo do corpo, já era cor de ferrugem. A lata agonizava e gemia ao se enroscar no próprio lixo. Sua respiração era pastosa e exalava um forte odor acre.
Eu enxerguei aquela cena, mas não senti nojo, porque também havia algo parecido
Não respondi aos primeiros impulsos, por isso não corri, não matei o verme. Meu braço paralisado era o mais sinistro e maior espetáculo para meus olhos. Aos poucos o sangue deixou de jorrar e ficou apenas escorrendo
Desisti. E nem mesmo esperava. Era. Silêncio.
O verme em minhas mãos, gordo, foi modificando o aspecto; adquirindo umas nuanças de cor. Primeiro um brilho de escama que só se vê enviesando o olhar, violeta, levemente rosa, encorpando a cor avermelhando-se, tornando-se corpo opaco amarelo-canário.
Eu não entendia, mas amava aquela cena. Ele desprendeu lentamente o ferrão e eu não vi cicatriz. Senti que naquele momento eu paria. Minhas sangradas mãos deram a luz a um pássaro arco-íris que com seu bico cor de laranja beliscou cada um de meus dedos. Minhas forças retornavam. A impressão era de que uma cachoeira de água muito clara e mansa percorria os meus órgãos; torneava minha pleura, refrescava meus rins, infiltrava-se em meu cérebro.
Recuperava-me.
Ao sentar, percebi que já não havia lata, nem cheiros, nem verme, nem sangue. O sol antes oculto, inundava a rua com raios convictos.
Ainda em minhas mãos, pássaro colorido me olhou. De pé, pude sentir o quanto eu era senhora. Poderia trazê-lo comigo como quem guarda um talismã sagrado, mas aquele olhar de passarinho...
Abri o quanto pude todos os meus dedos e mandei que meu pássaro voasse.
Pássaro colorido voou.
Ana Claudia Abrantes
Um comentário:
Ual ...
Professora, a senhora escreve muito bem ... Gostei muito do seu texto, é lindo .
[ Sou do cp2, sua aluna, turma 906, meu nome é Roberta. ]
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