quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O mar

O mar demora duas horas para bater,
depois bate.
Ele ainda não consegue conter a dor da fome,
mas uma dia a acolherá
e também se fará engolir
nem que seja aos gritos
ou
em um silêncio
com uma densidade profunda
pesando sobre a terra.


Ana Claudia Abrantes

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Haverá outras vozes e vezes. O país ficou quente, os déspotas, mais duros e desvelados. Gases e balas de borracha têm aberto clareiras de fogo; quebram vidraças. As pessoas têm medo e raiva; as manchetes são as mesmas, as mesmas as injustiças. Foi Ricardo Oiticica, tantos amarildos, a professora aposentada. Foi minha amiga, meu amigo, meu colega de faculdade e algo está diferente e talvez não se creia tanto assim. Tudo é o mesmo desalento, mas de mãos dadas.
Entre a indiferença, a luta, a esperança e a descrença nascem as crianças da minha casa. E quem vai educar esse sorriso, além de mim? Quem te erguerá e te levará ao mar, até onde dá pé? Depois de mim?

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O renascimento de Vênus

Tal como cai um rei de copas, caiu o sol de primavera.
A neblina levanta às quatro da manhã.
Assim não se vê o sol diretamente, mas ele está ali,
tingindo de cinza as folhas verdes
daquele canto de mata.
Enquanto isso, uma cascata cicia
um cântico
alvoroçado e brando, mas não sussurra.

É Oxum que grita, palidamente, a cabeça nas pedras,
o ombro ainda não saiu das águas.

Alguns raios a mais, amarelos, e enfim
ela emerge tensa, enregelada,
os lábios roxos,
ainda tem olheiras.
Na pele transparente dos seios pulsam
geográficas veias
azuis e verdes,
mas na cabeleira grisalha já se veem
uns fios ruivos,
querendo fazer aurora.


É preciso amar Oxum, mimá-la,
raspar com facão suas escamas de peixe,
deixar sangrar somente o necessário
e então
preparar-lhe um verão
(ameno),
deixar que tome
a alma das árvores,
amar iara virando fada
.
.
mais uma vez.



Ana Claudia Abrantes

sábado, 12 de outubro de 2013

o garoto do cinema

de que adianta
estar bonita
pra você
se não me liga
e não me queima
nem me vê
feito o que eu era
quando era
só você
o garoto
do cinema.





Ana Claudia Abrantes

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Compatibilidade

Porque me conquista com um sorriso que derrubará as vagabundas e/ou os vagabundos
em quem porventura seu olhar se demorar
(isto é, que se atravessarem entre nós).
Porque me exige com pulmões maduros e o talento dispersivo de tornados.
Eu sou de peixes, ele é de áries.



para Adriano



Ana Claudia Abrantes

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Álvaro

O meu filho não me prolonga; ele é todo ele, imensamente.
Escrever um livro é esforço vão.
Inútil cada palavra escrita na minha insônia.
Na minha cama cômoda e sem mel, cada palavra dita é dita à toa.
Tudo é vaidade e nada fica.

Por isso não risco troncos já tão feridos do amor dos outros.
Tampouco digo adeus às despedidas.
De cada adeus acolho seus abismos e aceito
o voo certo, preciso, endereçado
dos meus amores
para longe e nunca mais.

Eu.
Não plantei uma árvore.
Mas fico.
Eu sou a raiz serena de planta frutífera,
que no sereno, orvalhada e úmida,
dispersa a alma já difusa,
e o corpo rijo concretamente congela
na tua fotografia digital.
E beijo tua boca umas quatro vezes ao dia
pela tela do meu celular.
Nada.

Nada marca a minha passagem.
O esquecimento é inevitável e qualquer glória seria vã.
Nem a tua passagem se marca, Álvaro.
Só existe o caminho, que deve ser trilhado pelos dois deveras,
onde o nosso amor alegre
delicado como uma ternura
se desencontra
no infinito.



Ana Claudia Abrantes

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Vidros fechados

Escuto você chorando, mas você não está chorando. Vejo o brilho da festa, de muito longe. Os bombeiros passam.
Carrego, a partir das nove ou das dez
o peito aberto e a janela de vidro, fechada; lá fora é fresco demais.
Na minha noite sem sono e sem sexo, cruza o voo de um pássaro pela janela; um pombo, um morcego talvez.
São três, são quatro, são cinco; o voo é curvo, a noite é cinza, a alma pesa.
Não cai o pássaro com o peso da alma, não cai o sono.
Escuto você chorando, mas você não está chorando. Escuto você chorando, mas você não está chorando. Escuto você chorando, mas não.
Este à janela sou eu.



Ana Claudia Abrantes